Marcelo Viana traz em sua biografia algo que o difere de todos os 7,3 bilhões de habitantes do mundo. Ele é o único matemático do planeta (e único cientista da terra brasilis) a ser agraciado com o Grande Prêmio Científico Louis D., maior honraria científica concedida na França. No início de junho, ele estava no Institut de France, em Paris, para receber o prêmio por conta de suas pesquisas.
Diretor do Instituto de Matemática Pura e Aplicada do Rio de Janeiro (Impa), Viana foi reconhecido por estudar os sistemas dinâmicos — uma série de fórmulas aplicadas para antecipar resultados em determinada situação. Na prática, o tema é usado para prever a meteorologia, mas também pode ser usado para antever se a construção de uma barragem em uma mata vai extinguir uma espécie animal ou vegetal, por exemplo. O benefício é descobrir, antes de causar impactos físicos, os resultados de uma intervenção. Isso poupa dinheiro e, é claro, tempo.
Viana articula essas explicações em um sotaque português adquirido em Póvoa do Varzim, pequena cidade do norte de Portugal, próximo a Porto, onde viveu desde que era bebê até os 26 anos.
— Mas nasci no Rio de Janeiro — salienta.
O compromisso dele, de fato, é com terras tropicais. Os 450 mil euros recebidos pelo prêmio em Paris, a serem divididos com o outro vencedor, o francês François Labourie, da Universidade Nice-Sophia Antipolis, de Nice, serão destinados a criar bolsas de pesquisa para jovens matemáticos do Brasil e da França. A educação dos brasileiros, para ele, é a saída da crise econômica. E a matemática é instrumento de cidadania.
Nesta entrevista por Skype concedida a Zero Hora diretamente de Portugal, onde estava após receber o prêmio, Viana expressa a felicidade em ganhar a honraria e representar a ciência brasileira no Exterior, critica a fusão do Ministério da Ciência e Tecnologia ao Ministério das Comunicações e confessa a dificuldade de fazer ciência no Brasil. Apesar disso, demonstra fé na nova geração de cientistas e quer fazer a matemática cair na graça dos brasileiros. Confira os melhores trechos:
O que representa para o senhor o recebimento desse prêmio?
É uma honra e satisfação pessoal muito grande, mas também vejo como recompensa ao esforço da comunidade científica brasileira. A matemática por aqui é muito jovem. Foi só no anos 1950 que começamos a ter pesquisas de forma mais sistemática, o que é muito tarde em comparação à Europa e mesmo a países da América Latina. Apesar disso, nesses 60 anos chegamos a um patamar que nos coloca na elite mundial. Por detrás disso, está o progresso na ciência que o País alcançou.
O senhor vai ganhar, junto com o François Labourie, 450 mil euros. O que pretende fazer com esse valor?
Uma das coisas boas desse prêmio é que 90% do valor deve ser destinado para desenvolver um projeto de pesquisa. E nós financiaremos missões de jovens matemáticos brasileiros e franceses para fazerem pesquisa conjuntamente. A ideia é pagar passagem, diárias e alimentação para custeá-los por um tempo no Brasil, se forem franceses, ou na França, se forem brasileiros. As pesquisas devem ser em temas próximos a sistemas dinâmicos.
Além disso, outro aspecto que queremos privilegiar é o intercâmbio de estudantes de doutorado para a Franca ou Brasil. Qual a ideia por detrás? Além de avançar a pesquisa em sistemas dinâmicos, queremos ajudar a criar laços de colaboração com a Franca. E por que jovens? Bom, eles têm mais dificuldade em obter recursos – ainda mais na situação brasileira de crise -, mas também porque, quando você coloca jovens para trabalharem juntos, os laços ficam para a vida inteira.
Como o senhor avalia a fusão do Ministério da Ciência e Tecnologia ao das Comunicações?
Os dois ministérios são importantes, mas têm muito pouco ou nada em comum. Essa fusão é artificial e põe em risco o trabalho que o Ministério da Ciência e Tecnologia fez em 30 e poucos anos de existência. O Ministério deve levar o crédito nos últimos avanços, e talvez a contribuição mais importante tenha sido transformar a ciência em uma política de Estado, e não de governo. Mas em time que está ganhando não se mexe. Só que quando você combina essa mudança com um corte de verbas, você coloca uma situação que não é boa para a ciência brasileira.
Como o senhor vê os cortes de verba que vêm ocorrendo na área?
O fato de a situação econômica estar ruim não é desculpa, porque outros países na mesma situação estão aumentando os investimentos em ciência. A China está mal das pernas e está aumentando muito o orçamento em ciência, apesar da crise. Quando Obama assumiu o governo dos Estados Unidos em um momento de crise e desemprego, ele pisou no acelerador para investir em ciência. Nos EUA, investiu-se em pesquisa de energias renováveis e de tecnologias da informação. A saída do fundo do poço é investir em novas áreas de produção econômica. Assim, você lança as bases em áreas da ciência para tirar o país da crise. Só que, no Brasil, estamos fazendo exatamente o contrário.
O corte de verbas é muito ruim para a ciência, porque interrompe projetos. A ciência não é algo que se liga e desliga, que se interrompe e depois se pode continuar. Você não “religa”, porque o corte causa uma descontinuidade nos projetos de pesquisa. Inclusive, já estamos vendo pesquisadores brasileiros chutarem o balde e dizer que não dá para ficar correndo atrás de dinheiro.
Isso inclui o caso da neurocientista Suzana Herculano-Houzel, que foi para os Estados Unidos porque não recebia dinheiro suficiente para fazer pesquisa aqui no Brasil? É difícil fazer ciência por aqui?
A vida do cientista brasileiro não é fácil. A gente gasta muito tempo resolvendo questões administrativas para conseguir recursos e enfrentamos uma burocracia muito pesada. Quem depende de equipamento importado enfrenta muitas dificuldades. Trabalhamos em condições muito mais desvantajosas do que colegas que vivem em países com legislações mais inteligentes no que diz respeito ao apoio à ciência. Nossas instituições estão amarradas a um modelo de funcionalismo público que não é o que as instituições precisam. Nenhuma instituição do Exterior funciona bem com esse modelo de contratação.
Tenho preocupação com os alunos que foram para o Exterior pelo Ciências Sem Fronteiras. Demos a eles o gostinho do que é trabalhar nas melhores instituições do mundo, em lugares que se beneficiam de uma legislação mais flexível com o apoio de mecanismos privados, inclusive¿ Enfim, instituições construídas para despertar a criatividade e a originalidade. Agora, trazemos jovens para encararem um país com 10% de desemprego e instituições engessadas. Temo que muitos desses jovens desistam do Brasil e voltem para onde viram que a ciência é feita de forma mais favorável. Isso é um duplo desperdício: pela fuga de cérebros e pelo investimento de recursos do Ciências Sem Fronteiras.
Que tipo de flexibilidade o senhor diz que deveria existir? Em relação ao modelo de contratação não ter estabilidade, como nos Estados Unidos?
Exatamente. No Brasil, você contrata um professor universitário e a partir daí ele vira funcionário público com estabilidade. Mas você não sabe se ele vai ser bom pesquisador, é preciso testar. No Impa, para contornar o problema, nós só contratávamos pessoas com carreira muito avançada. Na ciência, você não pode contratar para a vida toda uma pessoa que não foi devidamente testada. No modelo americano, a pessoa é contratada por alguns anos e depois tem uma avaliação. Se for bem avaliada, ela ganha estabilidade, mas só depois de ter provado seu valor. É dessa flexibilidade que falo.
O modelo brasileiro, baseado no serviço público, é engessado – com raríssimas exceções. Você tem uma instituição de pesquisa que precisa de serviços técnicos altamente especializados e está sujeito à lei das licitações, que praticamente obriga a pegar o serviço mais barato, e não o melhor. Isso dificulta o trabalho do cientista de promover a excelência na instituição. Quando é preciso comprar um equipamento de altíssima precisão, não tem sentido comprar o mais barato, porque existe aquele que é específico para o trabalho de que você precisa. Enfim, o modelo de contratação e de gestão são totalmente inadequados. O cientista brasileiro enfrenta dificuldades que não são inerentes à pesquisa.
O que deveria ser feito?
Não devemos reinventar a roda, basta olhar as práticas de instituições mais bem sucedidas, como as melhores universidades americanas e institutos de pesquisa públicos ou privados dos países mais avançados. O modelo das universidades brasileiras não têm nada a ver com o que é feito em Harvard, Princeton ou em boas universidades alemãs e asiáticas.
Existem pontos positivos em fazer ciência no Brasil?
Sobrevivemos até debaixo d’água e tiramos suco de pedra. Nós somos ótimos em termos de criatividade e em sobrevivermos apesar das dificuldades. Mas o sistema em si tem poucas coisas positivas que eu possa elogiar, ao menos no que diz respeito a facilitar o trabalho dos cientistas. Em relação aos pesquisadores, temos alunos muito bons e um talento a ser explorado entre nossos jovens. Além disso, muitos veem a ciência como caminho para a progressão social, o que pode servir de motivação.
Houve cortes no orçamento do Impa. O que eles afetaram?
Não foram piores em relação a outras instituições, mas houve. Para o orçamento deste ano, o corte foi na ordem do 30%. Para conviver com isso, estamos evidentemente reduzindo algumas atividades. Iniciativas que lançaríamos neste ano terão que esperar. Tínhamos o plano de estender a Olimpíada de Matemática, que hoje começa no sexto ano do Fundamental, para quarto e quinto anos, porque identificamos que é nessa fase que a matemática deixa de ser atraente. O problema não surge nas séries iniciais. Depois é que ela vira o bicho-papão e é vista como chata. Quando chega o sexto ano, o estrago já foi feito. Mas, com os cortes, nossas ações foram limitadas.
Por outro lado, estamos estamos envolvidos na organização da Olimpíada Internacional de Matemática de julho de 2017 e no Congresso Internacional de Matemáticos de 2018. São eventos grandes que, pela primeira vez, acontecem no Brasil. O Congresso, aliás, acontece pela primeira vez no Hemisfério Sul. Por agora, estamos priorizando a preparação desses eventos. Queremos usá-los para impactar o ensino e a popularização da matemática.
Para isso, estamos lançando o Biênio da Matemática 2017-2018. O projeto de lei já foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora tramita no Senado. O objetivo é ajudar a melhorar o ensino e promover a popularização da matemática na sociedade. Nesse biênio, vamos realizar várias iniciativas focadas na criança, na família, no professor e na escola.
Por que o brasileiro tem medo da matemática?
Crianças pequenas não têm medo. Ao longo do processo de aprendizagem é que isso se dá. Nossa escola é muito ineficaz. A matemática é apresentada como um conhecimento mecânico, misterioso, sem lógica… Parece um conjunto de regras arbitrárias desligadas da realidade. Isso é fruto de um sistema escolar que não cumpre sua função de ensinar, por conta da formação do professor, pela desmotivação em ensinar, pela falta de boa remuneração. Se obrigam o aluno a ficar sentado horas a fio a decorar algo que parece não fazer sentido, é óbvio que ele vai detestar.
O senhor já afirmou que o ensino ruim da matemática impede o exercício da cidadania no Brasil. Qual a relação?
Um amigo me enviou um vídeo no qual aparece uma moça do Nordeste que vende castanhas-de-caju no mercado. Ela diz que cada sacola é três reais, mas que duas sacolas ficam por cinco. Aí chega uma pessoa e pergunta: “Posso levar três sacolas por 10 reais?”. Só que a moça não sabe matemática, então ela responde que três sacolas por 10 reais ela não pode fazer. Ela diz isso porque não sabe matemática o suficiente para vender castanhas-de-caju, que é a profissão dela. Quando a falta de conhecimento em matemática limita o que você quer fazer como cidadão, é como se você não soubesse falar direito sua língua.
O que pode ser feito para melhorar o ensino da matemática? O senhor já declarou que ele é catastrófico.
É um problema muito complexo, pela dimensão do nosso sistema educacional que envolve 2 milhões de professores e 250 mil escolas. Mas há três aspectos estratégicos. O primeiro é melhorar a formação do professor de matemática. Quem está nas salas de aula, de modo geral, não sabe o que vai ensinar nem sabe ensinar. Isso é catastrófico. Outra coisa é valorizar a carreira do professor da escola básica – não só do professor matemática. Não se pode esperar bons resultados de alguém que ganha mal e é obrigado a trabalhar dezenas de horas para compor a renda familiar, sem quaisquer estímulos.
O terceiro ponto é valorizar a matemática dentro das famílias. Quando um pai ou mãe fala que nunca entendeu matemática, ele diz que matemática não é relevante. Mas ela é importante, sim – para a pessoa, para o profissional e para o país. Não estou dizendo que é fácil realizar isso. Mas, de novo, não precisamos reinventar a roda. Basta olhar para países que são sucesso em educação e fazer algo parecido, para estarmos melhor do que estamos agora.
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