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JULHO DAS PRETAS  – Pesquisadoras avaliam participação de mulheres negras na ciência e reivindicam ampliação de políticas

(Foto: ​Nacho Doce/Reuters)

“Quando a mulher negra se movimenta, 
toda a estrutura da sociedade 
se movimenta com ela” 
(Angela Davis)

Representando 60 milhões de pessoas, as mulheres negras são maioria em nosso país e lideram o percentual da população brasileira presente no mercado de trabalho. Ainda assim, são essas mesmas mulheres a ocuparem o topo dos rankings de vulnerabilidades no Brasil: recebem os salários mais baixos, são as principais vítimas de violência e seguem como presença minoritária na universidade, apesar dos avanços consolidados pela Lei de Cotas, que completa 22 anos em agosto. Neste Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, lembrado em 25 de julho, a ADUFC ouviu pesquisadoras negras para aprofundar o debate sobre a urgente e necessária ampliação das políticas sociais para tornar o ambiente acadêmico mais diverso e representativo da sociedade brasileira. 

Uma discussão em sala de aula conduzida pela Profª. Cláudia Magalhães, da Universidade Federal do Cariri (UFCA), reflete o cenário que ainda se reproduz em parte considerável das universidades públicas. “Há um ano, pedi que meus alunos levantassem todos e olhassem uns para os outros, numa turma de 47 pessoas. Esperei um minuto enquanto eles olhavam entre si e perguntei: ‘cadê os negros dessa sala?’. Todos eles viraram pra mim e disseram: só tem a senhora”, descreve a docente, que é lotada no Centro de Ciências Agrárias e da Biodiversidade (CCAB). “É nítida a urgência dos negros e negras nos espaços de formação superior”, acrescenta.

Um levantamento de 2023 do movimento Parent in Science mostrou que, entre as 16.108 bolsas de produtividade (PQ) em vigência em julho do ano passado, 64,4% haviam sido destinadas a homens e 35,6% para mulheres. No nível 1A (o mais alto e direcionado a pesquisadores com no mínimo oito anos de doutorado), apenas 27,2% das bolsas eram de mulheres – nenhuma delas preta ou indígena. “Falta ao Brasil desenvolver políticas mais eficazes e efetivas quando se trata da participação de mulheres na ciência. É imperiosa a representação das mulheres negras nas instâncias de decisão no campo científico”, defende a Profª. Rosalina Semedo, do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).

Na avaliação de Rosalina, a participação de mais pesquisadoras negras na ciência, que vivenciam os atravessamentos de gênero e raça, é fundamental para enriquecer e diversificar o espaço acadêmico. “No caso específico das mulheres negras, é possível pautar em nossos estudos as problemáticas que nos envolvem, como as violências e violações de direito sofridas, as desigualdades, preconceitos e discriminações vivenciados em todas as áreas, a ausência de políticas públicas para fazer face a problemas concretos vivenciados”, diz. Cláudia Rodrigues (UFCA) corrobora: “É fato histórico que, em qualquer lugar do mundo e em qualquer tempo da história, as questões discutidas e contempladas em sua grande maioria estão correlacionadas a quem detém o poder e o conhecimento”.

A secretária-geral da ADUFC, Profª. Maria Inês Escobar, endossa o posicionamento e ressalta que o discurso de neutralidade científica demonstra a construção das relações histórico-culturais e do poder nelas existentes. “A diversidade no ambiente científico traz avanço para a vida em sociedade e para as demandas modernas da relação sociedade e natureza. O avanço não está necessariamente nas respostas, mas nas perguntas. São os olhares e necessidades diferentes que geram conhecimentos novos para toda a humanidade, perspectivas inovadoras, reais, plurais”, salienta a coordenadora do curso de Economia Ecológica da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ela defende o letramento racial decolonial na gestão e no financiamento da pesquisa, e na formação de pesquisadores e pesquisadoras.

 “A ciência no Brasil é uma herança”

Mesmo com os incentivos da Lei de Cotas, instituída no primeiro governo Lula visando ampliar o acesso de pessoas negras ao ensino superior, e as conquistas já asseguradas até aqui, esse cenário de exclusões perpassa problemas históricos e sociais herdados de longa data, frutos da colonização brasileira. “A ciência em nosso país é uma herança. Não se faz um pesquisador da noite para o dia. Muitas coisas são urgentes, mas não vão mudar tão rapidamente”, avalia Cláudia Rodrigues, explicando que a jornada científica é longa e requer anos e anos de estudos a fio.

Quem pode dedicar-se a um curso diurno e abrir mão de trabalhar? Quem é a principal responsável pelos cuidados domésticos e com os filhos e outros familiares? São obstáculos concretos que refletem a cara da ciência brasileira – branca e masculina. Mais do que o fomento à pesquisa, é fundamental que haja a garantia ampla e integral de direitos que viabilizem a permanência de mulheres negras na universidade. “Muitas vezes a universidade oferece bolsas, como as de permanência, visando manter os alunos na universidade, por diversos fatores. Mas tem um fator que, com tudo isso, ainda impede que ela permaneça na universidade, conclua seus estudos e dê prosseguimento aos seus sonhos em uma pós-graduação, que é o fator social”, questiona a docente da UFCA.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 revelou um aumento de todas as formas de violência contra a mulher, dados que impactam especialmente as mulheres negras. “Disputar o espaço da ciência, para nós, inicialmente, é estar viva e poder chegar ao ensino fundamental e médio. E precisamos de condições de políticas públicas para que a gente chegue até aí: a escola pública, a política de permanência nessas instituições, a nossa condição de vida”, aponta a Profª. Zuleide Queiroz, do Departamento de Educação da Universidade Regional do Cariri (URCA). “Quando nós chegamos, nós damos certo. Então mostra que a questão não está na nossa raça ou na nossa etnia. O que nos coloca como desafio estruturante é o racismo”, completa.

Zuleide Queiroz lembra que, mesmo com os avanços do Brasil em relação à ampliação das mulheres na ciência, ainda há uma concentração dessas pesquisas em determinadas áreas, mostrando a dificuldade de romper algumas bolhas científicas, como a área de ciência e tecnologia, por exemplo, majoritariamente masculina. “Quando se homogeneiza a ciência em geral, as pessoas pensam que vai ser tudo igual: na física, na matemática, na química, nas ciências humanas, nas ciências sociais. E nós sabemos que não vai ser”, diz.

É uma preocupação entre as pesquisadoras as condições de acesso à universidade (e a todos os direitos sociais) para as mulheres trans negras. “Muitas vezes, nós não vamos conseguir chegar a esses espaços (científicos) porque não estaremos vivas. E, se a gente pensar no agrupamento de mulheres trans e travestis, mais ainda”, destaca Zuleide. “Muitas vezes falamos apenas das mulheres cis, mas, quando a gente pensa na mulher negra e trans, aí é que a participação delas (na ciência) vai pra 0,001%”, concorda Cláudia.

A falta de dados e informações sobre pesquisadoras e cientistas negras é outra barreira a ser desconstruída. “Algumas de nós, quando acadêmicas e produtoras de conhecimento, ficam no esquecimento, como aconteceu com Lélia Gonzalez e outras, que somente agora estão sendo reconhecidas e ‘resgatadas’ das sombras das referências bibliográficas”, destaca Rosalina. “No Brasil, assim como na América Latina, nos encontros de mulheres e de mulheres cientistas especialmente, temos pautado essas questões, inclusive considerando uma abordagem interseccional, que permite evidenciar as desigualdades e diferenças e demonstrar que há mulheres negras fazendo ciência e com excelência, mas é preciso mais investimento, mais atenção ao que produzimos”, acrescenta.

Para Zuleide Queiroz, a ciência é mais um dos lugares de destaque onde as mulheres negras precisam ter possibilidades reais de chegar. “Nós acordamos mais cedo, nós cuidamos da nossa família, nós cuidamos da família das pessoas não negras, estamos no mercado de trabalho como um todo. Movemos a economia, mas lamentavelmente não estamos nesses passos de decisão”, analisa. E pontua: “Angela Davis é muito feliz quando diz a frase: Quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.

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