A quinta roda de conversa Diálogos da Mineração de Urânio e Fosfato, realizada na última quarta-feira (16/3), debateu os possíveis impactos na “Economia Popular” caso o Consórcio Santa Quitéria, que visa explorar urânio e fosfato no sertão cearense, seja implementado no estado. Esses impactos estão sendo discutidos no ciclo de rodas de conversas – iniciativa coletiva construída por diversas entidades –, com transmissão no canal da ADUFC-Sindicato no YouTube, durante fevereiro e março, sempre nas noites das quartas-feiras, às 19h30.
O geógrafo Pedro D’Andrea, militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e representante da Articulação Antinuclear do Ceará (AACE), iniciou o debate apontando que a mineração, há muito, deixou de ser uma forma de se ganhar dinheiro, numa troca internacional entre o Brasil e o mundo, para se tornar um bloco de poder. “Nunca os capitalistas desse setor tiveram tanto poder como agora e, por isso, eles vão destituindo as condições de reprodução de vida nos territórios”, disse.
O alerta feito pelo geógrafo girou em torno dos mitos que as mineradoras e suas alianças governamentais disseminam ao chegar nos territórios, realizando disputas de narrativas sobre crescimento econômico da região e geração de empregos para a comunidade. Já com relação aos perigos do urânio, D’Andrea trouxe o exemplo de Caetité, na Bahia, e os riscos de contaminação nos alimentos acarretando a consequente perda de toda uma cadeia econômica popular para os camponeses.
“Um risco de contaminação inviabiliza a irrigação e impede tanto a circulação para a subsistência quanto sua comercialização. Se licenciado o projeto Santa Quitéria, no Ceará, vai ocorrer o mesmo nas bacias hidrográficas de Acaraú e Curu, por exemplo, que são algumas das várias bacias que banham o estado e que serão afetadas por essas contaminações de urânio e fosfato, sem falar dos impactos na dispersão do gás radônio na atmosfera”, afirma o geógrafo.
Para Josy Sena, que faz parte de duas importantes cooperativas de agricultores tanto no município de Itatira, com sede em Lagoa do Mato, quanto em Santa Quitéria, envolver a comunidade no desenvolvimento dessas ações é crucial para ampliar as alternativas econômicas da região, em detrimento aos interesses das grandes empresas. “A Agropec, em Santa Quitéria, comercializou cerca de R$ 600 mil em mercadorias no primeiro ano de comercialização, que foi em 2021. O que nós vemos com a ameaça da extração desses minérios tão mortíferos é que todos os âmbitos serão prejudicados, os humanos, a fauna e a flora”, pontua.
A falta de informação em várias comunidades impacta diretamente o quesito das “falsas promessas” mencionadas anteriormente por D’Andrea no evento. Sobre os impactos desse aspecto, Josy questiona: “O que acontece é que o urânio é um minério radioativo, silencioso, o vento leva suas partículas e as nascentes serão contaminadas. A produção não será comercializada e, se for, por um preço muito baixo. Qual município vai querer a produção de Itatira sob essa ameaça de contaminação de seus alimentos?”.
Por uma outra economia possível
O mediador do encontro, Thiago Valentim, da Escola Família Agrícola Jaguaribana e da Comissão Pastoral da Terra do Ceará, ressaltou na abertura do evento que uma outra economia baseada em princípios dos ciclos naturais é desafiadora, porém possível, citando inclusive a proposta ideológica do Papa Francisco por uma Ecologia Integral. Esse fato foi endossado pelo Prof. André Ferreira, diretor de Relações Intersindicais da ADUFC e docente do Departamento de Teoria Econômica da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ele ainda uma importante reflexão acerca das modificações estruturais vivenciadas desde os anos 1970 e a inversão da lógica produtiva capitalista, em que a substituição humana se deu em contrapartida ao avanço da chegada do maquinário industrial.
“É preciso falar da economia popular como uma realidade. O próprio Papa tem procurado reunir essas formas de atuação. A partir dos anos 1970 houve um processo de intensificação da automação industrial, o que deixa claro que o processo de avanço das mineradoras nos territórios não vai gerar empregos para incorporar pessoas da comunidade. Essa é a realidade que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) enfrentou, por exemplo, no contexto de avanço da soja no Rio Grande do Sul, na questão do agronegócio”, ressaltou. “Não gera empregos porque, na produção, essa substituição homem-máquina já foi feita”, complementa.
As reflexões do evento seguiram em torno da proposta de uma economia popular em que as pessoas não se dividam entre proprietários dos meios e não-proprietários, pois uma das características dessa economia é de que todos possuem os meios e todos se organizam em uma autogestão. O processo se intensifica a partir do aumento do desemprego e do avanço do capital sobre áreas periféricas, ou seja, para que uma economia popular tenha consistência, é preciso entrar na disputa com a economia dominante, e o papel dos movimentos sociais e da articulação nos territórios ganha protagonismo essencial na luta diária pelo enfrentamento à lógica do grande capital.
Para Gleidson Mendes, da direção estadual do MST, a luta pela reforma agrária é também no intuito de democratizar a terra e, assim, democratizar o poder. “Temos uma narrativa na luta contra os agrotóxicos. Em Santa Quitéria, temos 23 assentamentos federais e oito estaduais, ou seja, são quase 1.800 famílias assentadas pela reforma agrária. O camponês que tem quatro vacas tira leite, faz o queijo, alimentando as vacas e também seus familiares. Tem também a horta, ou seja, cada família assentada gera em torno de três, quatro empregos”, relatou.
Além de falar sobre a ameaça da atividade minerária na região, o debate sobre a agroecologia ganhou protagonismo. “É um modelo que deve ser seguido. Esse debate deve estar presente nas escolas para que ganhe a dimensão de enfrentamento à crise que estamos passando na saúde, na geração de empregos e no meio ambiente. É fundamental no sentido de uma nova era, em que o ser humano em contato com a natureza se construa enquanto tal, e não destrua a natureza, destruindo, assim, a si próprio”, reflete o dirigente do MST.
Discutir economia popular é, pois, se aproximar do movimento que discuta uma outra economia possível, que gere a vida e não a morte, que cuide também do meio ambiente. Esse pensamento foi endossado com a participação do Prof. André Lima, economista, docente da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e integrante da Rede Jubileu Sul Brasil.
“Temos base material, tecnológica e científica para que um outro projeto de sociedade, que eu chamo de ecossocialismo, aponte para uma superação desse modelo, para uma sociedade pós-capitalista. O termo, na realidade, é o de menos. O importante é que exista a mobilização concreta nos territórios, que faça existir a vida em contraposição ao projeto de morte do capital”, pontuou o pesquisador, que também é doutor em Geografia.
Além da ADUFC, por meio do GT de Política Agrária, Urbana e Ambiental (PAUA), estão na organização do ciclo de debates a Articulação Antinuclear do Ceará (AACE); o Núcleo de Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Tramas/UFC); a Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA); a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); o Movimento pela Soberania Popular da Mineração (MAM); o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); e a Cáritas Brasileira – Regional Ceará. A iniciativa conta com o apoio da Justiça nos Trilhos, do Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração, do Greenpeace, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e da Articulação Antinuclear Brasileira.
[+] Assista ao vídeo completo do debate no YouTube da ADUFC-Sindicato: