Na primeira roda de conversa do evento “Diálogos da Mineração de Urânio e Fosfato”, pesquisadores e lideranças comunitárias debateram, na última quarta-feira (9/2), os riscos envolvidos em caso de concretização do Consórcio Santa Quitéria. Um dos focos do debate foi o desrespeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que assegura consulta aos povos tradicionais em projetos que alterem ou impactem as vidas dessas comunidades. O debate inaugura um ciclo de sete rodas de conversa sobre a exploração de urânio e fosfato no Ceará, que ameaça diversas regiões do estado. As rodas de conversa seguirão pelos meses de fevereiro e março, sempre às quartas-feiras, a partir das 19h30, com transmissão no canal da ADUFC no YouTube.
A iniciativa tenta avançar, com aval dos governos federal e estadual, através da invisibilização de comunidades indígenas, quilombolas e camponesas, dentre outras que estão entre as mais atingidas. O ciclo de debates resulta de ampla articulação de forças para barrar o “projeto da morte”, como tem sido chamado por estudiosos e lideranças comunitárias. A ADUFC-Sindicato faz parte desse coletivo, ao lado de movimentos sociais, acadêmicos, advogados populares, militantes quilombolas e indígenas. O primeiro evento foi mediado por Julianne Mello, advogada popular e integrante da Articulação Antinuclear do Ceará.
Na mesa de inauguração do ciclo de debates, foi contextualizado o projeto de exploração mineral no estado, cuja ideia surgiu ainda nos anos 1970 como falsa promessa de desenvolvimento regional e ganhou força a partir dos anos 2000. O Consórcio Santa Quitéria é uma parceria da Indústrias Nucleares do Brasil (INB) com a Galvani, empresa produtora de fertilizantes fosfatados. Em 2020, após a segunda negativa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), as empresas entraram com novo pedido de licenciamento, que aguarda parecer.
“No projeto de Santa Quitéria, esse direito de consulta já vem sendo violado. Em primeiro lugar, pelas próprias mãos do Estado, quando a própria Funai e a Fundação Palmares, ao serem consultadas sobre a existência de terras indígenas e comunidades quilombolas, afirmaram que não haveria terras indígenas ou comunidades remanescentes de quilombos tituladas a menos de oito quilômetros da área diretamente afetada pelo empreendimento”, explica a advogada Talita Furtado, professora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) e integrante do Núcleo Tramas/UFC.
Também consta no estudo elaborado pelas empresas que a União alegou não haver terra indígena a menos de 100 quilômetros de distância nem território quilombola mais próximo que 50 quilômetros de onde o projeto é idealizado. Isso revela uma negação dessas comunidades pelo próprio poder público. “O Nordeste tem uma diversidade muito grande de comunidades indígenas e quilombolas, muitas ainda não plenamente regulamentadas, mas profundamente impactadas por explorações agrícolas, tanto do agronegócio como da pecuária”, ressalta o Prof. Estevão Palitot, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
O docente, que desenvolve pesquisas na área de etnologia indígena e etnicidade, garante que os impactos do projeto da mina de Itataia, em Santa Quitéria, são mais amplos do que o divulgado oficialmente e estão conectados a empreendimentos de outros estados. “A mina de Itataia não tem impactos apenas no contexto cearense, mas está relacionada a uma reconfiguração territorial que está sendo implementada, como Matopiba – com vários conflitos com terras indígenas – ou planejada, como a usina de Itacuruba, no sertão do Rio São Francisco”, ressalta.
Estevão Palitot também apresentou mapas que projetam o impacto ambiental de Itataia no Ceará, revelando que grande parte do estado deve ser afetado. Segundo o pesquisador, a mina já está muito próxima à Serra das Matas e aos territórios indígenas da Serra de Baturité, com inserção nas comunidades quilombolas do Sertão Central, e deve impactar até povos indígenas e comunidades quilombolas da Região Metropolitana de Fortaleza. “Além da direção dos ventos, que pode levar a pluma de radioativa até outras comunidades em toda a Serra da Ibiapaba e Sertão de Crateús”, acrescenta.
Lideranças populares cobram consulta às comunidades e cumprimento da legislação
Um dos gargalos do projeto de mineração em Santa Quitéria é a completa falta de diálogo com os povos que serão diretamente impactados pela exploração de urânio e fosfato na região, o que desrespeita a Convenção 169 da OIT, regulamentada e vigente no Brasil desde 2003. “O direito de consulta livre, prévia e informada é assegurado para quaisquer intervenções que provoquem mudanças, alterações, impactos nos modos de vida das comunidades tradicionais, e esse direito é uma consequência do direito à autodeterminação dos povos de definir as suas prioridades e desenvolvimento social e econômico”, lembra a advogada Talita Furtado.
A reivindicação também é de Teka Potyguara, agricultora, ambientalista e liderança indígena. “Nós somos contra esse projeto de morte. Se ele for ativado, vai trazer várias mortes para nós: a morte da terra, da cultura, a morte do corpo mesmo, da inteligência, do jeito de se comportar, a morte da língua”, resume, reforçando a necessidade de união entre as mais diversas forças populares para barrar a proposta.
Aurila Maria Sales, do quilombo Nazaré em Itapipoca/CE, diz que é preciso lutar para reivindicar a sobrevivência dessas comunidades. “Estamos numa corrente de luta e enfrentamento, faremos o impossível para que esse processo não avance e para que a gente não tenha mais esses danos em nossas vidas, pois já convivemos com a invisibilidade e a negação das nossas políticas”, reforçou a integrante da coordenação nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas. Ela também é agricultora, professora da rede municipal de Itapipoca e técnica em educação escolar quilombola do município.
Na avaliação de Gleidison Karão Jaguaribaras, há uma total falta de transparência e diálogo sobre os reais prejuízos do projeto para toda a sociedade. “No projeto não constam os seus danos, como o esgotamento hídrico do sertão e a poluição das águas. O fato de a gente ser totalmente ignorado nos preocupa muito porque isso vai nos impactar de várias formas”, apontou o agricultor, ambientalista e liderança indígena.
O depoimento é corroborado por Elvis Aroerê Tabajara, liderança indígena da Serra das Matas. “Sabemos dos vários riscos, e um deles é a contaminação através dos ventos, que pode chegar a mil quilômetros. E aqui onde estamos a localização é de 30 a 40 quilômetros. A aldeia mais próxima fica a 50 quilômetros. Estamos solicitando apoio das comunidades indígenas, quilombolas, dos assentamentos, dos governantes em defesa da vida”, diz. “Vão ser fornecidos 850 mil litros de água por hora para esse empreendimento”, acrescenta, alertando sobre os riscos de esgotamento hídrico.
Além da ADUFC, por meio do GT de Política Agrária, Urbana e Ambiental (PAUA), estão na organização do ciclo de debates a Articulação Antinuclear do Ceará (AACE); o Núcleo de Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Tramas/UFC); a Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA); a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); o Movimento pela Soberania Popular da Mineração (MAM); o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); e a Cáritas Brasileira – Regional Ceará. A iniciativa conta com o apoio da Justiça nos Trilhos, do Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração, do Greenpeace, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e da Articulação Antinuclear Brasileira.
[+] Assista ao vídeo completo do debate no YouTube da ADUFC-Sindicato: