Especialistas renomados da área da saúde, economia e políticas públicas participaram, na última terça-feira (19/10), de uma mesa-redonda transmitida online sobre um tema que vem ganhando evidência nacional nas últimas semanas: as práticas anticientíficas e antiéticas envolvendo pacientes com Covid-19 atendidos em unidades privadas de saúde. Intitulado “Escândalo dos planos de saúde e privatização do SUS”, o debate foi promovido pelo Observatório de Políticas Públicas (OPP) da Universidade Federal do Ceará (UFC), em parceria com Grupo de Trabalho (GT) Saúde da ADUFC-Sindicato e o Coletivo Rebento de Médicos em Defesa da Vida e do SUS.
A conversa foi conduzida pelo coordenador do GT Saúde e diretor da ADUFC-Sindicato, Prof. Roberto da Justa. “É um debate muito importante, diante das denúncias que surgem a cada dia”, destacou ele, que é, ainda, docente da Faculdade de Medicina (FAMED) da UFC e integrante o Coletivo Rebento de Médicas e Médicos em defesa da vida, da ciência e do SUS. A necessidade de pautar o tema é justificada, também, pelo tamanho das operadoras de planos de saúde privados no Brasil: são 48 milhões de pessoas beneficiárias, sendo mais de 1 milhão delas apenas no Ceará.
Participaram da mesa-redonda também quatro especialistas: Prof. Fernando Pires, do DTE/FEAAC e das pós-graduações em Avaliação de Políticas Públicas da UFC, onde também coordena o OPP; Liduína Rocha, médica obstetra e integrante do Coletivo Rebento; Rômulo Paes, médico epidemiologista, pesquisador da Fiocruz-MG e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO); e Arruda Bastos, médico sanitarista e oncologista, ex-secretário da Saúde do Ceará e membro da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD).
Dentro da temática da condução do enfrentamento à pandemia de Covid-19 no Brasil, Rômulo Paes destacou erros procedimentais que ele julgou “graves”. Há, segundo o vice-presidente da ABRASCO, uma vasta lista de equívocos cometidos, “alguns de forma deliberada”. Os resultados, ainda de acordo com o médico, podem ser observados no dia a dia. “Mas essa ‘grande máquina’ que produziu óbitos e sequelas tem presença e histórico mais longos”, ponderou. Paes lembrou que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, que teve seu relatório final lido esta semana, “permitiu que pudéssemos compreender determinados mecanismos de um uso dessa presença no mercado de forma criminosa”. Ele salientou que isso foi praticado no Brasil, mas não de forma isolada.
Arruda Bastos apontou que o negacionismo e as tentativas do setor privado interferir no sistema público de saúde já existia antes mesmo da pandemia de Covid-19. O médico participou, inclusive, da luta pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele relembrou que as operadoras de plano de saúde não tinham regulamentação e que, apenas em 1983, “alguma coisa na área de proteção” surgiu, referindo-se aos programas estaduais de defesa do consumidor (Decons), vinculados aos Ministérios Públicos Estaduais. E que só em 1990, com a lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC), se passou a ter mais controle sobre a atuação das operadoras. Foram muitos anos sem regulamentação, de fato, até o surgimento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), no ano 2000. “Mas nada está tranquilo”, enfatizou Arruda, lembrando a relação entre agentes da ANS com grupos políticos.
Saúde e proteção social apropriadas por interesses econômicos
A dificuldade de acesso e assistência responsável por inúmeros casos de morte materna que poderiam ser evitadas no Brasil foi trazida por Liduína Rocha, a título de comparação com os casos evitáveis de óbitos por Covid-19. “Isso acontece como uma determinação política e sistêmica. São questões que têm de ser trazidas para o debate”, diz a médica-obstetra, cuja área de pesquisa acadêmica é morte materna. Ela tocou, em sua fala, também em questões econômicas e estruturais: “Não é possível, diante desse momento histórico que estamos vivendo, que a gente não tenha uma atuação mais orgânica e mais plural. É importante também a gente resgatar a formação médica no Brasil e quanto ela contribuiu para reforçar a ideia de uma aristocracia que é real a partir do extrato econômico social em que a maioria dos estudantes de medicina se constitui”.
Ainda dentro do contexto econômico do debate, o Prof. Fernando Pires destacou o que ele classifica como assuntos importantes na atualidade: o interesse do setor privado na área da saúde e a dinâmica da economia. Em todo o mundo, de acordo com o coordenador do OPP/UFC, a saúde e a proteção social, de uma forma geral, foram apropriadas por interesses econômicos e pelo processo de acumulação de capital no mundo. “Temos a operacionalização do sistema, a economia do bem-estar; a saúde passou também a ser funcional para o processo de acumulação de produção, utilizando técnicas sofisticadas de análise custo-benefício”, exemplificou o professor.
(*) A mesa-redonda foi transmitida online pelas três entidades organizadoras e pode ser assistida novamente, na íntegra, no canal da ADUFC no YouTube