Ângela Pinheiro (professora da UFC), Alba Carvalho (professora da UFC) e Camila Holanda (professora da UECE).
Palavras, palavras,
se me desafias,
aceito o combate
(Carlos Drummond de Andrade)
A pandemia da Covid-19, ao irromper entre nós, em março de 2020, veio com efeito de um turbilhão, a desmontar a nossa vida construída, vida de todo dia… Frente a este fenômeno, urdido nas tramas desta civilização capitalista, a vida parecia estar de “cabeça pra baixo!” Então, decidimos nos juntar e enfrentar este inimigo, que se apresentava desconhecido, registrando nossas memórias através do partilhar de palavras, acatando o combate anunciado por Drummond, nos versos de “O lutador”.
E, assim, nasceu Memórias de Quarentena, sem muitas pretensões, a não ser partilhar a vida em textos, neste momento de medos, inseguranças e instabilidades. A iniciativa foi tomando formas, reunindo relatos de pessoas com inserções, emoções e realidades diversas. Foi um registro de experiências vividas na pandemia e narradas através de breves textos que foram compartilhados por mensagens de WhatsApp, na página da ADUFC e em perfil do Instagram.
Assim, recebemos e publicamos 74 textos de diferentes atores sociais que, a partir de seus engajamentos políticos, profissionais e afetivos, compartilharam os sentidos de suas vivências e percepções sobre o isolamento social e a pandemia. São textos abundantes em intensidades, indignações e sensibilidades. Narrativas de vida, a mesclar saberes, sentimentos, denúncias, indignações e descobertas. Uma bela e forte amálgama de vivências. Alguns textos foram produzidos coletivamente; portanto, são vozes e palavras múltiplas, cooperativas e afinadas em suas emoções.
Os escritos registrados em Memórias de Quarentena nos interpelam a pensar criticamente, de diferentes ângulos, uma experiência coletiva que, vivida de formas próprias e peculiares, impactou as práticas de sociabilidade no mundo todo, no final desta segunda década do século XXI. O conjunto diversificado de relatos parece formar um caleidoscópio de muitas cores e nuances, para ver, pensar e sentir a pandemia que se instaura e se dissemina entre nós, em meio a profundas apartações sociais e políticas.
Como artesãs e artesãos da vida, os sujeitos das narrativas movimentam fios de diferentes texturas, compondo um grande mural, de força singular. Os escritos de Penha, Rafaela e Ramon, profissionais da saúde, retratam os desafios do cotidiano nas Unidades de Saúde; Cristiana, Aurilene e Caio nos falam de práticas terapêuticas e de autocuidado durante o isolamento social; o cotidiano da convivência familiar foram retratados por Alba e Ângela, Zuleica e Luciana; o sofrimento psíquico e a saúde mental, nos duros circuitos da pandemia, foram temática trabalhada por Cláudia e Gisélia e por Alessandra Xavier; os textos de Padre Luís Sartorel e Pastora Elizabeth mostram caminhos da espiritualidade em tempos de sofrimentos e dores; as desigualdades sociais, nas formas de viver e de acessar os sistemas públicos, foram abordadas por Antonia Rozimar e por Maria Zélia; a arte e os artistas marcaram a cena nos escritos de Andréa Bardawil, Sandra Montenegro, Dilmar Miranda e Caubi, com Suene trazendo a dor, em forma de poesia dramática e intensa; o racismo e suas marcas de exclusão e violência constituem temáticas de denúncia nos textos de Veriana, Margarida Marquês, Marcus Gigio, Caubi, Lia, Jana, Margarida Pimentel e Dilmar; um grupo de militantes e de integrantes dos movimentos sociais focaram a questão ambiental nas palavras de João Alfredo, Jeovah, Moésio, Pedro Medeiros, Pedro Molinas e José Carlos e a questão indígena no relato de Clarissa; a tragédia da Covid e a importância do SUS foi discutida por Eliana Guerra, Fernando Pires e Lúcia Conde; as violações de direitos de crianças e adolescentes, vítimas de duros cenários de injustiças sociais, foram publicizadas nos escritos de Lídia Rodriguês e Andrezza, Margarida, Ângela e Lara, David Araújo, Jéssica, Vanessa e Isabel; Já Lucas, Larissa e Alisson, jovens universitários e moradores da periferia de Fortaleza, relatam como o vírus não é democrático, mas mutante de vivências diferenciadas entre grupos e segmentos sociais; Ingrid Leite e Alessandra Félix alardearam as vozes das mães das periferias, cujo medo da morte de seus filhos é cotidiano e independente da pandemia; a precariedade e as exclusões na educação via trabalho e ensino remoto são bem delineadas nos registros de Camila, Mac, Ana Luz e Zuleide; já as denúncia de violações na educação inclusiva é apresentada no texto de Keila e David; Lídia Valesca circunscreve as tragédias da Covid vivenciadas por moradores de rua; Adriano Caetano manifesta seu protesto militante em defesa da vida e dos corpos LGBTQI+, em tempos de agravamento da intolerância e do reacionarismo; Jacira Serra faz ouvir sua voz de indignação com violências que atingem a população idosa; Irenísia, em seu escrito literário, proclama que os “velhos querem viver”, para além de todas as discriminações e preconceitos acirrados no contexto da Covid-19; Elza Braga traz à público os desmontes da Política de Segurança Alimentar no atual cenário brasileiro, mostrando a importância dessa política no enfrentamento da fome e da pobreza; Michely e Alda, Vanessa, Severina Flor e Carol Bentes trazem à cena desafios e dilemas que perpassam o universo das mulheres, intensificados em tempos de pandemia; em meio às injustiças sociais e apartações que se agravam na pandemia da Covid-19, Ingrid Rabelo, Jean, Lúcia, Patrícia, Suyanne, Diego e Joaquim acendem a esperança, quando partilham a vastidão de ações de solidariedade que foram realizadas, especialmente, nas periferias da cidade. Por fim, recebemos textos de narradores que escolheram retratar seus cotidianos, as mudanças de planos, projetos e jeitos de viver, (re)viver e (con)viver na travessia da pandemia e do isolamento social, como os escritos de Madeira, Ester e Ruth, Mário Felipe, George Paulino, Lara, Leandro, Ana Paula, Antônio David, Isaurora e Fátima, marcados por sensibilidade em abundância.
E, assim, tomamos essa experiência de colecionar as Memórias de Quarentena em formato de palavras escritas por pessoas por quem nutrimos profundo carinho e admiração, como um relicário, um lugar destinado a guardar preciosidades, um cofre de emoções, uma caixa de experiências, que, por terem sido compartilhadas, ganharam eternidade. Agradecemos a cada narradora e a cada narrador que destinaram tempos e sentimentos para essas partilhas, que, na verdade, são pedaços de cada um e cada uma de nós, enunciados por palavras combativas, indignadas e afetuosas.