Dilmar Miranda (Professor da UFC)
Dessas coincidências terríveis da história. Revisando um texto meu, justo no dia da Consciência Negra, tomei conhecimento do assassinato trágico de João Alberto Silveira Freitas perpetrado por dois seguranças do Carrefour. Há séculos a carne negra é a mais barata. Muitas páginas foram escritas sobre os horrores dos navios negreiros conhecidos como “tumbeiros”. A legislação lusa sempre burlada regulamentava os navios sobre condições de higiene, ventilação e total de “peças”. Os custos de um cativo, com água e alimentos, eram baixos. Mesmo sendo alta a mortalidade, todos lucravam: comerciantes com o negócio humano e o governo com os impostos pagos pela quantidade de escravos. Quanto maior seu número, maior a renda para os cofres do reino. Na viagem, a mortalidade variava de 10 a 30%, dependendo dos alimentos, água, total de escravos, dimensão do navio, sobretudo do tempo de viagem. Marcados a ferro, confinados nos porões, sujeitos à fome, sede e calor, à promiscuidade, falta de ventilação, sofriam toda sorte de privações. Numa descrição de um navio com 670 cativos, os homens achavam-se empilhados no porão, sempre acorrentados pelo temor de revolta. As grávidas ocupavam a cabine da popa. As crianças, amontoadas “como arenques num barril”, dormiam umas sobre as outras. “Havia sentinas para satisfazer as necessidades, mas como muitos temiam perder seus lugares, aliviavam-se onde estavam, em especial os homens, cruelmente comprimidos um contra os outros”. O relato do médico irlandês R. Walsh testemunha as condições de um navio negreiro que presenciou, quando sua embarcação perseguiu um navio brasileiro, por força de um acordo internacional proibindo o tráfico ao norte do Equador. No mar há 17 dias, com 562 escravos (homens, mulheres e crianças), 55 haviam morrido e lançados ao mar. Todos sentados, entre as pernas uns dos outros, sem poder mudar de posição. Afirma J. Rugendas que eram embarcados cada ano p/ o Brasil cerca de 120 mil negros, raramente chegando de 80 a 90 mil ao destino. Aproveitava-se qualquer espaço, desde que comportasse uma pessoa. “Acrescentemos a essa deplorável situação, o calor ardente do Equador, a fúria das tempestades e alimentação, carne salgada, a falta de água. Às vezes acontece um cadáver ficar vários dias entre os vivos. A falta de água é a causa mais frequente das revoltas de negros; mas, ao menor sinal de sedição, não se distingue ninguém; fazem-sebimpiedosas descargas de fuzil nesse antro atravancado de homens, mulheres e crianças. Acontece que, desvairados pelo desespero, os negros furiosos se atiram contra seus companheiros ou rasgam em pedaços seus próprios membros”. Nus, esquálidos e imundos, os sobreviventes eram encaminhados aos mercados. Novo ciclo de horrores. No Rio, levados ao mercado do Valongo, eram submetidos a um “exame brutal e açoite”, segundo uma viajante inglesa. São exibidos para serem examinados, apalpados por compradores, após o regime de “engorda”: pirão de mandioca, raros pedaços de carne salgada, água, batata, laranjas para curar o escorbuto, além de nova demão de óleo de palma, já passado na África. “O açoite era para mostrar vivacidade no pular, gritar e chorar. Os horrores são tantos que os olhos traem o desejo de serem logo comprados, e quando o são, demonstram alegria”. A escravidão foi uma prática generalizada, sem qualquer possibilidade de refúgio em alguma parte do país, salvo nos quilombos, diferente do que ocorreu com o norte dos Estados Unidos, percebido pelos cativos de lá como a terra da promissão e liberdade, cantados nos worksongs e spirituals da música afro-norte-americana. Aqui a escravidão era vista como fato natural, sancionada pelo poder espiritual e temporal. Apenas quando se transpunha o limiar da crueldade, recomendava-se moderação. Os ideais do Iluminismo e os ímpetos libertários da Revolução Francesa nos chegaram débeis demais para contestá-la. A escravidão, aceita como algo banal, era raramente referida em termos institucionais. A constituição de 1824 reza um dispositivo que define como cidadãos, “os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos (filhos de escravos) ou libertos”. Este silêncio revelava um certo pudor da consciência cristã que procurava recalcar uma realidade perversa em si e cruel nas suas formas de repressão. As legislações lusa e brasileira sempre protegeram a propriedade dos escravos. Possuí-los era um dos maiores privilégios. A justiça fazia vista grossa aos abusos infringidos contra os cativos, mas era terrivelmente cruel quando eles iam contra um senhor ou sua família, caso ainda não havia sido praticado alguma vingança a mando do senhor. A própria lei extintora do tráfico era desrespeitada. Mais de meio milhão entrados ilegalmente, foram mantidos em cativeiro, com a conivência de um poder que usava de todos os subterfúgios para proteger os senhores, como o retardo de processos, exigindo provas da origem africana dos negros, data de nascimento e de entrada no Brasil. Os africanos livres salvos dos “navios negreiros e emancipados, ao invés de recambiados à África, eram colocados sob a ‘proteção’ do governo e dados como mortos através de certidões falsas obtidas por seus comerciantes ou pelos órgãos oficiais do próprio governo, que podia assim explorá-los à vontade, já que eles não mais existiam”. Qualquer pessoa de pele negra ou mestiça, com alguma dúvida sobre sua situação civil, era um escravo em potencial, espécie de propriedade não reclamada pelo seu dono, como qualquer animal abandonado, podendo ir a leilão depois dos editais. Mais do que necessidade, ter escravos dava prestígio, pois viver do seu próprio trabalho era uma ignomínia. Havia ainda os escravos “ao ganho”, um contingente negro a trabalhar por conta do seu senhor: pedreiros, vendedores, quitandeiras, prestadoras de serviço, carpinteiros, sapateiros, prostitutas, músicos de “banda de barbeiros”. Esmoleres cegos ou aleijados podiam render ao dono uma boa diária. No Rio, senhores de escravos chegavam a possuir até trezentos negros “ao ganho”. Paga a diária estipulada pelo senhor, caso algo sobrasse, o cativo guardava para sua alforria. Até aqui, um terrível fragmento de nossa história. Desgraçadamente o estigma da vida humana sem valor, da “peça negra” barata continua. Indignarmos é pouco, muito pouco. É PRECISO DAR UM BASTA!!!