Caio Monteiro (Professor, Psicoterapeuta e Colecionador de Palavras).
Cotidianamente aguardo pessoas. Pessoas que abrem e fecham a mesma porta. Elas vêm e vão, trazendo e levando consigo suas versões de si mesmas e suas histórias que, generosamente, chegam até a mim. Partilho do privilégio de testemunhar as esquinas de suas vidas através de palavras que, feito tripulantes e navegadores, conduzem os barcos da existência e assim permitem algum encontro entre as tensões que circulam os nossos corpos. Corpos feito fronteiras e margens que nos conectam e nos separam neste oceano de mistério que compõe a nossa distância, apenas amenizada pela escuta atenta, que se dá como a antiga observação dos astros que, por sua vez, permitiram alguma orientação e destino. O oceano, sempre misterioso, iludiu-me com a falsa sensação de continuidade que me habituou a navegar em calmaria diante do meu porto-consultório, em conformidade com a minha antiga bússola psicológica, até que as águas agitadas da pandemia, tal qual uma tempestade, transformou profundamente as marés. Foi preciso mudar de porto e as navegações fizeram-se por outras águas, outros estreitos, outras margens, outras palavras, outras naves. As ilhas tornaram-se mais distantes, as embarcações precisaram de outros guias e orientações. Além da antiga e indispensável bússola, a tecnologia dos computadores teve que ser incorporada neste momento, inescapavelmente. Contudo e apesar de tudo, não foram tão somente as marés que se modificaram. Enfrentar o mar revolto muda de maneira profunda barcos e marinheiros. Do meu porto-consultório, ouvindo as palavras-tripulantes, quase já não escutava sobre sonhos-oníricos e muito pouco sobre sonhos-aspirações. Talvez, o mundo em que vivíamos já proibisse, inclusive, a respiração como um direito democrático. Os sonhos foram expulsos, apagados, ou aprisionados nos porões dos barcos da existência e já não se faziam comumente presentes nas navegações hodiernas. Quando muito, tanto quanto as sereias eram seres mitológicos dos quais não se via mas se ouvia falar. Com a mudança das marés os sonhos libertaram-se dos porões, resgataram-se, voltaram a ocupar a proa dos barcos e, agora, já passamos a ouvir o canto das sereias. Não mais estando, fisicamente, no meu porto seguro e agora também embarcado ao sabor das marés, penso sobre os sonhos e me ponho a perguntar: O que aconteceu com os sonhos? Por que haviam sumido? Por que retornam agora? Navegando, ajustando as velas, me dou conta de que há muito eu também já não sonhava. Era como se existisse uma espécie de apagamento, uma cortina ou véu que se colocava na hora de dormir. Não me recordava dos meus sonhos e, muitas vezes, depois das pesadas rotina de trabalho que me absorvia na impessoalidade marcante dos nossos tempos, eu negociava horas de sono em troca de algum espaço, ainda que mínimo, e destacadamente atravessado de privilégios que me permitiam algumas gotas de liberdade. Todos os dias acostumaram-me a fazer as mesmas coisas e, quando distante do meu porto-consultório, olhava sem ver, ouvia sem escutar, falava sem dizer, tocava sem sentir e no final de cada dia eu me punha a contrabandear algumas migalhas e pequenos fragmentos de escolha à custa de horas de sono. Dei-me conta de que máquinas não sonham, os sonhos são instituições existenciais. Os mares revoltos e trágicos da pandemia mudaram as correntes e fizeram aparecer toda sorte de sofrimentos, mas sub-repticiamente também fizeram aparecer um futuro que não está dado como uma continuidade eterna de um presente que nos transformou em máquinas, em engenhos de moer sonhos, absorvendo a nós mesmos como recursos das engrenagens deste mundo. Um mundo que parece ter nos destinado a pastilhas para dormir e pastilhas para acordar, este mundo já não precisa mais identificar sonhos perigosos para a ordem injusta e de sofrimento da maioria. A ordem criminosa do mundo já havia, paulatinamente, sequestrado nossos sonhos-oníricos e nossos sonhos-aspirações. É preciso reivindicar o não conclamado direito de sonhar.