Wanderson Lucas Souza Silva (Bacharel em Humanidades e estudante de licenciatura em Sociologia na UNILAB)
“Levanta Lucas, levanta!”. Acordo atordoado, meu pai complementa a amarga notícia: “Derrubaram o F.” (utilizo apenas a inicial em respeito à família e à memória de meu camarada). Procuro o celular para saber das horas, são 8h:30min. Saio de casa correndo e, do lado da igreja de Santo Antônio, vejo mais um corpo de um amigo no chão. É maio, segundo mês de quarentena, vou me aproximando do local quando falam que o corpo está lá desde o amanhecer, mais uma vez o coração aperta e penso: da “ponte pra cá”, até o ritual fúnebre é negado. Mais um corpo negro assassinado, sem culpado, sem comoção, sem luto. Começo a presente reflexão partilhando um momento de dor que se repete, diariamente, nas favelas e comunidades de todo Brasil. Alerto que não posso trazer um relato da minha experiência no “confinamento social” sem lembrar e denunciar as violências vividas por mim e pelos meus. Morador do Bairro Planalto Pici, periferia de Fortaleza, trago – nesse curto escrito – incômodos que rasgam a carne e asfixiam aqueles que são impossibilitados de prevenir-se da covid-19. O isolamento social (a “quarentena”), medida sanitária adotada com intuito de mitigar o contágio pelo o novo Corona-vírus, é vivenciada a partir de um corte que mutila as possibilidades materiais de cumprir as indicações de saúde por parte da população. Essa navalha fere, contundentemente, a periferia. Desde do início da quarentena – na mídia, conversas cotidianas e discussões nas redes sociais – levantou-se a preocupação com o contágio e a manutenção da “quarentena” nas favelas e periferias do Brasil. Diversas campanhas e apoios foram organizadas para tentar diminuir as condições de precarização da vida em inúmeras dessas localidades. Apesar das importantes ações, quero expor feridas mais profundas que atravessam nossa existência e que nos colocam numa posição de desigualdade na prevenção contra a doença. Tentando cumprir desde do início as “dicas” de saúde, logo percebi sua impraticabilidade no nosso contexto. A partir de duas das principais recomendações, quero trazer uma reflexão que vai além da vida precária, e pontua como a configuração da “quarentena” dificulta nossa prevenção, dos favelados. Nos primeiros dias do atual contexto, compreendi um esforço do Estado em condicionar o funcionamento da “quarentena”. Tal esforço foi sentido por um intenso fluxo das forças policiais nas ruas. No meio de diversas necessidades, o que nos chegou primeiramente foi a ordem de ficar em casa. Ora, pouco importava a perda dos empregos, a carestia de vida e a falta dos serviços básicos: a promoção da “quarentena” nas comunidades acontece em um movimento contraditório de imposição e quebra, com atores e métodos diferentes daqueles presentes em bairro nobres. Na justificativa de “cuidado com a sociedade”, o Estado impôs a “quarentena” na prática da ameaça, xingamentos e agressões. Os baculejos arbitrários e abordagens agressivas, assim, passaram a ter a justificativa de combate, agora, à crise sanitária. No passo em que a quarentena é ordenada, ela é quebrada por intervenções policiais nas comunidades. O nosso sono foi interrompido por balas, mesmo no cumprimento do que nos foi ordenado: fomos alvejados. O isolamento foi marcado por intensificação dos ataques à periferia, um exemplo disso é a marca de 35 mortes por intervenção policial no mês de abril no Estado do Ceará (conforme dados da SSPDS), ou seja, mais de uma morte por dia. Com nossa quarentena vivenciada por imposições violentas, também não podemos seguir a dicas de saúde com igualdade. O uso da máscara, enquanto uma forma eficaz de prevenção à contaminação da covid-19, passou a ser obrigatório dias após o decreto de “quarentena”. O uso, e a própria simplicidade da fabricação, ajudariam na prevenção da população periférica que enfrenta a pandemia com escassez de recursos e acessos. Porém, as favelas no Brasil e seus moradores são marcados por uma caracterização de potencial criminoso, de constante suspeição. As perseguições, intimidações, abordagens e denúncias, fazem parte do cotidiano dos moradores da periferia, mesmo com a cara amostra e identidade no bolso. No contexto da quarentena, o uso da máscara para nossa prevenção foi marcado por olhares perversos e abordagens discriminatórias, intimidando-nos. Percebe-se uma dupla criminalização, portanto, dos moradores da periferia: o não-uso da máscara caracterizando um inimigo da saúde pública e o uso da máscara constituindo um potencial suspeito. No enfrentamento diário à precarização da vida, as periferias de todo Brasil construíram campanhas de solidariedade, com doações de alimentos, materiais de limpeza e máscaras. O Planalto Pici também foi local de importantes campanhas com o protagonismo de torcidas organizadas, grupos de capoeira e organizações autônomas. Não tive as condições materiais de um isolamento recluso, resisto e sobrevivo com o meu povo. Dedico esse texto ao F., Mizael, João Pedro e a todos os periféricos que não puderam exercer o seu direito de manter-se vivo.