Neste mês de agosto de 2020, a intervenção na Universidade Federal do Ceará (UFC) completa um ano. Filha carnal do bolsonarismo, a gestão de Cândido Albuquerque, nomeado reitor no dia 19 de agosto de 2019, repete localmente o estilo autoritário e agressivo do Planalto e altera, da mesma forma, a realidade para que sua propaganda se coloque como verdade. Mesmo que superficialmente, ao se direcionar o olhar sobre esse ano na UFC, ficam evidentes o tempo conturbado, as dificuldades de diálogo, a fragmentação institucional, o clima geral de apreensão.
Se esse olhar se dá de maneira mais profunda, a partir das ações e tentativas da intervenção, seus dois objetivos principais se mostram. E eles têm a ver com poder e dinheiro. O primeiro grande objetivo de Cândido Albuquerque é destruir a gestão democrática da universidade, no que ele se empenhou especialmente, ao longo desse primeiro ano. O segundo é destruir a universidade como instituição pública de ensino e pesquisa, colocando a UFC a serviço de corporações privadas e, portanto, do lucro privado. O primeiro objetivo é assim subsidiário do segundo, que é o central. A retórica adotada no Future-se, de captação de financiamento privado para a universidade pública, revela sua verdadeira face quando adota como requisito a destruição da democracia e da autonomia universitárias e dos mecanismos de controle de gasto público. Se fosse para o bem da universidade, para aumentar seus recursos, haveria necessidade de destruir sua estrutura democrática?
Esta semana, o Ministério da Educação (MEC) confirmou que haverá um corte linear de 18,2% no orçamento discricionário das universidades em 2021.
Então, o projeto camuflado no discurso privatizante do MEC e da intervenção na UFC é bem outro: retirar orçamento da universidade e obrigar professores e pesquisadores a buscarem complementos privados, ao custo de esvaziar a função da universidade pública. Sem financiamento público adequado, não será possível continuar formando pessoas com qualidade e produzindo conhecimento independente e socialmente relevante. Basta olhar para países que já implementaram esse tipo de política neoliberal em suas universidades. Em muitos deles, professores e pesquisadores precisam complementar seus salários em projetos com empresas e as carreiras docentes são destruídas pela lógica imediatista de mercado. Esse tipo de situação – o business environment seguindo a lógica mercantilista do interventor – pode até servir à multiplicação de papers mas não à produção de conhecimento livre e de interesse social.
Diante desses exemplos, a universidade pública brasileira, gratuita e de qualidade – com sua estrutura de gestão democrática e alunado massivo, oriundo hoje em grande parte das classes populares –, é uma instituição única e de grande relevância social, uma conquista importante do povo brasileiro, que precisa ser defendida mais que nunca dos cantos de sereia e aventuras neoliberais.
Recentemente, o interventor disse em nota que a ADUFC é “do contra”. Não se pode esperar dele, de fato, mais que esse aviltamento político e intelectual do debate. A defesa dos processos democráticos não passa de uma birra para quem a democracia é um incômodo, a ser rapidamente descartado. Mas essa acusação às entidades representativas de serem “do contra” também é uma técnica de distorção da realidade. Os métodos de propaganda bolsonaristas são normalmente projetivos. Ou seja, eles acusam no outro aquilo que querem esconder sobre si mesmos. Vejamos então quem é mesmo o “do contra”.
Não foi sendo do contra que Cândido Albuquerque assumiu esse cargo na universidade ilegitimamente? Ele usurpou o lugar do reitor eleito, contra a decisão de mais de 95% dos votantes na consulta à comunidade universitária. Por que Jair Bolsonaro e Abraham Weintraub, notórios inimigos da universidade pública e da ciência, teriam-no preferido ao reitor eleito, contrariando a escolha democrática da comunidade universitária? Porque ele foi uma escolha justamente contra o caráter público e democrático da UFC. Ele e outros interventores deixados por Weintraub são o legado nefasto da pior gestão do MEC para as universidades públicas.
E continuou nessa toada. Desde que finalmente conseguiu sentar na cadeira do reitor, após um período despachando aqui e ali por medo de protestos, o interventor vem atentando sem descanso contra a estrutura democrática da universidade. Lembremos que o princípio da gestão democrática das instituições de ensino superior está previsto na Constituição e na Lei de Diretrizes e Bases (LDB). E ele sempre vociferou contra a consulta para reitor e as reuniões dos conselhos.
Num de seus primeiros atos, Cândido Albuquerque optou por decidir monocraticamente sobre programas de bolsas, contra a resolução do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) que disciplinava o assunto. Dessa vez, ele queria usurpar as prerrogativas de um conselho superior da universidade. Por portaria, ele resolveu criar programas e desativar outros. Por que não convocou o CEPE para alterar a resolução e rediscutir os programas, se a intenção era aumentar o número total de bolsas? Porque assim como tomou o lugar do reitor legítimo, ele queria e continua querendo tomar também o lugar dos conselhos superiores, decidir acima deles, contra o Estatuto da UFC.
“Passando a boiada” sobre os conselhos superiores
A relação com os conselhos é outro capítulo dessa gestão contra a universidade pública. Os conselhos superiores, mesmo antes da pandemia, foram raramente convocados, embora conste em seus regimentos a previsão de reuniões mensais ordinárias. O interventor também é contra os regimentos dos conselhos.
Com a pandemia, ele aproveitou para “passar a boiada” e eliminar quase que completamente as reuniões colegiadas dos conselhos superiores. Usou um provimento, documento monocrático e de caráter emergencial, para normatizar de maneira permanente sobre os conselhos, convertendo as reuniões em plenário virtual no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) e concedendo-se superpoderes. Uma grande mobilização da comunidade universitária e suas entidades representativas conseguiu que se retirasse o caráter permanente dessa norma, limitasse os poderes do presidente dos conselhos, ampliasse prazos de manifestação nos processos e reduzisse o número de matérias que poderiam ser deliberadas via SEI.
O plenário virtual com a pauta dessa matéria mostraria que o interventor não apenas era contra os conselhos, mas também contra as regras mais básicas de reuniões deliberativas. Ele simplesmente encerrou a reunião quando perdeu a maioria, em pleno regime de votação, a pretexto de corrigir a minuta do provimento. A decisão sobre o documento seria tomada na mesma semana numa reunião por videoconferência, na qual ele forjou uma saída “negociada” para sua tentativa deliberada de burlar as normas da universidade.
Intervenção: contra estudantes, contra professores
Quanto aos Encontros Universitários, é preciso que se diga que foram feitos on line por causa da incompetência da intervenção, em especial da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE), que não conseguiu realizá-los no tempo previsto no calendário universitário de 2019. Se o reitor eleito tivesse assumido, certamente os Encontros teriam ocorrido no tempo certo, presencialmente, e não teria acontecido essa trapalhada. Este ano, em plena pandemia, a PRAE chegou a tentar reservar laboratórios de informática para os alunos sem acesso tecnológico se deslocarem para a UFC. Não fosse a rejeição dos diretores das unidades acadêmicas e a mobilização das entidades representativas, tal absurdo poderia ter se concretizado. Um disparate contra a vida e contra a saúde pública.
Ressalte-se que os Encontros Universitários foram feitos sem qualquer política de inclusão digital, o que pode ter levado nossos estudantes a sair do isolamento e a correr riscos num momento de contágio em alta. Além disso, muitos estudantes não chegaram a apresentar seus trabalhos por impossibilidades diversas, inclusive por terem de trabalhar para ajudar os pais, ou também por estarem abalados psicologicamente – e não está claro se realmente não sofrerão restrições nos próximos editais de bolsas.
Mais que contra professores, essa é uma gestão contra estudantes. Desde o início, a representação estudantil foi um alvo. Com base na denúncia de uma chapa pouco votada e derrotada na eleição do Diretório Central dos Estudantes (DCE), uma chapa que nunca apresentou recursos à comissão eleitoral e que sequer chegou a prestar contas ao fim da eleição, Cândido tomou sozinho a decisão de não reconhecer os representantes estudantis eleitos e não os convocar para as reuniões dos conselhos.
Chegado o dia 3 de agosto, o interventor lançou uma nota em que se apresenta como benfeitor de estudantes. Mas como? Os estudantes são parte da gestão democrática da universidade, constituem um segmento que deve estar representado em todos os colegiados. Portanto, a decisão sobre planos, programas e orçamentos também é deles. Faz parte do perfil paternalista e autoritário do interventor a ideia de conceder benefícios aos estudantes, enquanto os exclui das decisões e tenta reduzi-los à menoridade política. Mas ele se pretende muito moderno e mesmo modernizante. Por suas declarações em veículos de comunicação de Fortaleza, percebe-se que Cândido só entende “modernidade” na forma de produtos tecnológicos; parece não saber que relações sociais também se atualizam.
Por isso, ele não vê problema em aprovar um chamado Plano Pedagógico de Emergência (PPE) numa reunião do CEPE sem a convocação da representação estudantil. O PPE devia ser “concedido”, quando não “imposto” aos estudantes. É simbólico do modelo de universidade que Cândido Albuquerque veio implantar.
Normalidade forjada: alimento para tendências negacionistas do governo
A UFC é uma das poucas grandes universidades federais que optaram pelo caminho de apenas retomar de forma remota o semestre planejado para o presencial, simulando uma normalidade que não existe. O cansaço levou uma parte das pessoas a aceitar o PPE, não a concordância. Nunca chegamos a discutir as diversas alternativas de semestres suplementares e excepcionais, devido à intransigência com que a Pró-reitoria de Graduação (PROGRAD) impôs uma única alternativa de retorno às atividades de ensino. Tinha de ser a que fosse mais próxima da normalidade, para alimentar as tendências negacionistas do governo federal. Em contrapartida, foi concedida uma pseudoflexibilidade que jogou sobre os ombros de professores, funcionários e técnicos o peso da continuidade, em meio a restrições de toda ordem.
A minuta do plano de inclusão digital, matéria tão importante, também não mereceu a convocação da representação estudantil nem a apreciação em videoconferência. Só muita má fé para dizer que a ADUFC foi contra o plano que passou a incluir auxílio para equipamentos, quando foi esta entidade uma das que mais denunciaram a insuficiência da restrição da inclusão digital da UFC a chips. A intervenção cedeu a pressões, sim, pois foi exposta com o pior plano de inclusão digital das universidades federais. O pretexto de “estudar a legalidade” para a demora em prever equipamentos no plano é conversa fiada. Se a intervenção realmente “estudasse a legalidade” de seus atos, não estaria excluindo a representação estudantil eleita dos conselhos superiores.
A ADUFC denunciou, na verdade, o critério produtivista e excludente de seleção de estudantes para concessão do auxílio, um tipo de critério que também só existe no edital da UFC. Um sinal ruim que damos sobre nós. Enquanto todas as universidades federais estão preocupadas com o aumento da desigualdade e a exclusão, a UFC se prende ao detalhe de pontuar estudantes em situação de fragilidade mais produtivos, em vez de levar em conta uma análise socioeconômica mais acurada, como outras universidades públicas fizeram.
A partir de denúncia sem reconhecimento legal, Cândido não reconhece o DCE. Ao não empossar conselheiros, julga e pune antes da Justiça. Também não reconhece a ADUFC, entidade cujo processo eleitoral não pode desqualificar. Sistematicamente, ele tem ignorado o sindicato dos docentes, ao deixar sem resposta pautas de reivindicação tiradas no Conselho de Representantes e na Assembleia Geral. Cândido Albuquerque vai além: utiliza a página oficial da universidade para atacar a ADUFC, atribuindo-lhe posicionamentos inverídicos, buscando estigmatizar a entidade , como faz com a representação estudantil.
Deliberadamente, o interventor ignora a força do sindicato ao voltar quase uma década atrás e insistir em referir-se a ele, inclusive publicamente, como “associação”. Logo a entidade representativa que é, hoje, a caixa ressonante para os docentes da universidade – categoria que vem tendo sua voz ignorada e sufocada pelo autoritarismo instaurado há um ano. Não é uma questão de reconhecimento, afinal. Assim como seu chefe no Planalto Central, Cândido Albuquerque é contra a democracia universitária e também contra a democracia social. Sem elas, fica desimpedida a força do dinheiro e das armas, contra a vida, o conhecimento, a liberdade e a justiça social. Enfim, contra tudo pelo que vivemos e lutamos.
Fortaleza, 7 de agosto de 2020
Diretoria da ADUFC-Sindicato
(Gestão Resistir é Preciso (Biênio 2019-2021)