Vanessa Feitosa (Psicóloga do CRAS; Integrante do Fórum DCA Ceará e do NUCEPEC/UFC)
É quase impossível mensurar as tantas vezes que ouvi minha mãe dizer: “Minha filha, estude para não passar pelo que eu passo. Estude para ser alguém na vida!”. Não tenho dúvidas de que isto influenciou para que eu fosse a primeira de minha família a acessar uma faculdade. E vejo que esta concepção de minha mãe diz respeito aos modos de subjetivação de uma sociedade capitalista que, em geral, valoriza muito mais o “ter” do que o “ser”. Ter um carro, uma casa, um iphone…
Mas, para além desse reflexo social na construção psíquica de minha mãe avaliando o “alguém na vida” imbricado ao “ter”, havia ainda sua história de vida com diversas violações de direitos, que vão desde a insegurança alimentar à gravidez na adolescência. Tal realidade a fazia compreender que, se tivesse estudado – já que também não conseguiu concluir a educação básica – teria uma profissão e, com isto, disporia de renda para pagar por serviços que ela nem compreendia como sendo DIREITOS estabelecidos em nossa Constituição. Infelizmente, estes não eram garantidos para ela, assim como não são garantidos a milhares de brasileiros.
Vi minha mãe muito jovem passar por transtornos quando precisava acessar locais que prestam serviços públicos, como postos de saúde, hospitais e até a própria assistência social. Eram espaços em que ela, por vezes, precisava discutir com algum servidor público para que conseguisse ser atendida e, inclusive, respeitada.
Das lembranças mais longínquas de minha memória e tendo em vista meu contexto atual num Centro de Referência da Assistência Social, existe uma que considero interessante compartilhar. Certa vez, em meio a tantas responsabilidades cotidianas que se tornam ainda mais desgastantes num contexto de vulnerabilidade social, lembro da dificuldade de minha mãe em juntar vários documentos. Ela tentaria renovar o Bolsa Escola, um programa de transferência de renda da Assistência Social, que existia na época, estando em transição para ser unificado no Programa Bolsa Família. Após horas na fila, retornou para casa contrariada, tanto por mais uma vez ter recebido um atendimento que mais parecia um favor prestado com má vontade, como por ter sido informada de que havia sido cortada do Programa.
O tempo passou e, na tentativa de que eu e minha irmã não passássemos por essas situações, minha mãe trabalhou duro como diarista e manicure para pagar escola particular para nós, já que não contava com a educação pública de qualidade, por experiência própria. Assim consegui concluir duas faculdades, sendo a primeira em universidade pública. Hoje, como psicóloga da Assistência Social, percebo que os problemas que minha mãe passava para ser atendida se repetem todos os dias.
Dentro de equipamentos da Assistência Social, como CRAS e CREAS não são incomuns relatos da população que não consegue ser atendida, bem como não consegue receber o acolhimento devido que, inclusive, é estabelecido por lei! Por trás dessa realidade, temos a ausência do Estado, a insuficiência do número de profissionais junto à desmotivação daqueles com baixos salários e, por vezes, sem formação adequada para compreender a interseccionalidade de questões sociais que perpassam e constroem as vidas dos sujeitos que buscam atendimento.
Tal fato está relacionado com uma política que tem sido mantida de forma precarizada não recebendo a atenção, o valor e o investimento devido por parte de governantes, que estão mais interessados na manutenção de privilégios do que na ascensão social, ou seja, do que na melhoria das condições e qualidade de vida para aqueles que se encontram vulnerabilizados.
Nesse contexto e em meio a uma Pandemia, as vulnerabilidades sociais ganham ainda mais destaque, no que concerne a piora do que já estava ruim, refletindo, assim numa maior busca pela Assistência Social. São desempregados, violentados de todas as idades, famintos, não higienizados, expulsos de casas, sem água, sem máscaras, sem casa, sem álcool em gel, desesperançosos e desesperados. São estes que precisam principalmente agora de atenção, cuidado e atendimento digno. A questão é: terão?
Enquanto o Brasil ocupa o segundo lugar no Mundo em casos de COVID-19,com mais de 90 mil mortos, estabelecimentos vão recebendo cada vez mais autorização para funcionar. Será acaso que isso ocorra num momento em que as mortes se concentram nas camadas menos favorecidas, diferente do início da pandemia? Por fim, a frase “estude para não passar pelo o que eu passo” tem a voz de um Brasil sofrido, que não tem direitos básicos garantidos e identifica o valor que é dado majoritariamente a quem tem maior poder aquisitivo.