Jana Said Melo (Psicóloga, Psicanalista, Psicopedagoga)
Esses dias têm produzido em mim um desejo pela escrita. Principalmente depois de ler sobre a morte de Miguel. Essa talvez tenha sido a gota d’água. A tristeza me enlaçou de um jeito que ficou difícil respirar. Agora escrevendo sobre, choro. É aquele momento em que o Real surge violentamente e te tira dos eixos. Lembro de uma música da Legião Urbana que diz: E destes dias tão estranhos/Fica poeira se escondendo pelos cantos/Este é o nosso mundo/O que é demais nunca é o bastante/E a primeira vez é sempre a última chance/Ninguém vê onde chegamos/Os assassinos estão livres, nós não estamos.
Os assassinos estão livres… os assassinos de Marielle, de João Pedro, de Miguel… porque, na minha cabeça, não foi um acidente, Miguel foi assassinado.
Durante muito tempo da minha vida, mesmo tendo uma mãe e um pai incríveis que, desde que me entendo por gente, lutam pelas minorias, sempre nos ensinando, a mim e a minha irmã, sobre as desigualdades, mesmo assim, eu não percebia a enormidade do meu privilégio branco. Na escola, por volta dos 11 anos, tive uma grande amiga, que os meninos chamavam de azulão, porque o tom da pele dela era bem escuro. E muitas vezes me perguntavam como eu poderia ser amiga dela, porque além de preta, ela era filha da empregada. Era assim que se referiam a ela na escola: a filha da empregada. Ela não caía nas provocações e ainda me defendia da crueldade dos meninos. Ela era incrível. Na adolescência, ainda na escola, por volta dos 14-15 anos, meu melhor amigo era negro. Ele tinha também um apelido relacionado a cor da pele, dois, na verdade. No caso dele, ele incorporou um dos apelidos e até hoje é reconhecido por ele. O outro apelido era Cirilo. Para quem não sabe, Cirilo é o nome de uma personagem da novela mexicana Carrossel. Um menino negro e pobre, apaixonado pela menina branca, rica, que só o maltratava. Enfim, como estávamos maiores, a nossa amizade não incomodava tanto. O problema foi quando, em um aniversário de uma colega de sala, nós ficamos. Aí começaram os comentários maldosos sobre a gente.
Na época, eu achava que estavam “zoando” a gente simplesmente pelo fato da gente ter ficado, e não por eu ser branca e ele, preto. Ainda não tinha a dimensão da brutalidade do racismo. Essa brutalidade que hoje me espanta, me causa medo e muita, MUITA raiva. A raiva pode ser um agente de mudança poderoso. Nós vemos isso sempre do lado dos apoiadores do Bozo. A raiva que eles sentem dos pretos, dos pobres, das mulheres, dos LGBTQIA+.
Eu estou usando da minha raiva para aprender. Aprender a não usar expressões racistas, a questionar a falta de pessoas pretas nos mais diversos lugares. Por exemplo, entre nós Psicanalistas. Não conheço pessoalmente nenhum Psicanalista preto. Nunca havia me questionando sobre isso antes. E agora, estou. Mesmo nos eventos das escolas de Psicanálise, aos quais frequento, não me recordo de ouvir a fala de um analista preto. Haverá sempre aqueles que afirmarão, baseados na teoria psicanalítica, que a lógica da Psicanálise é outra. Que a Ética da Psicanálise é outra. Consigo compreender isso, acho eu. Porém, meu maior aprendizado em Psicanálise é justamente questionar o que está posto.
Enfim, comecei falando de Miguel, depois de minhas lembranças e, por fim, do meu fazer. Porque no fim das contas, está tudo enredado em um nó. Aquele, sabe? O Borromeu.