Lia Braga (Artista e Educadora de Fortaleza/CE)
Meu corpo nesta escrita sente-se inquieto, a pulsação do meu templo sagrado é misto de tristeza e revolta, as águas de minhas mães ancestrais inundam-me. Sou de minha mãe Iemanjá, aquela que rege o meu Ori, minha cabeça e, junto a ela, vem minha mãe Oxum e outras/os Orixás. Mas são as ondas do mar e as cascatas das cachoeiras que me constituem como mulher água, mulher emoção, mulher maternal. Neste sentido, meus tesouros são as crianças e, por elas, eu luto por um mundo menos desigual e menos desumano. Continuarei na luta antirracista, com as armas matriarcais, legadas por essas deusas negras. Eu te convoco para esta luta também.
Ao som da chuva que ecoa pela fresta da janela, escoa um líquido que, ao mesmo tempo, me faz pensar na morte e no renascimento. Dias maçantes e massacrantes se perpetuaram nos noticiários. Além das mortes de João Pedro e George Floyd, o menino Miguel de 5 anos e negro, morreu, no dia 02/06/2020, diante de um ato de omissão e de abandono. Uma mulher branca e rica, ao apertar o botão do elevador, jogou a criança para o encontro com a sua prematura morte. A patroa Sari Corte Real, manteve, durante a pandemia, o trabalho doméstico da empregada negra e moradora da periferia de Recife, a mãe de Miguel, Mirtes Renata. Mediante pagamento de fiança, Sari, simbolizando a supremacia branca, goza de plenos poderes em liberdade. Até quando os culpados serão soltos ou terão suas responsabilidades minimizadas? O racismo estrutural histórico e perverso, a cada momento, ceifa mais vidas negras. Vidas que sempre foram massacradas, discriminadas em suas existências e destituídas de sua humanidade.
Há alguns anos, desenvolvo trabalhos nas áreas da arte e da educação, com crianças, sobretudo as da Educação Infantil. A morte de Miguel me faz pensar que ele teve os seus direitos humanos negados. Junto a Miguel, muitas outras vidas de crianças negras também se perderam e continuam a se perder quando, desde pequenas, elas vivenciam o racismo, entranhado socialmente. Quando, por exemplo, crianças negras não se enxergam nas histórias, desenhos e brincadeiras ou se veem representadas, mas de maneira negativa e pejorativa, suas dignidades e autoestimas morrem a cada dia. Assim, um terrível abismo se apresenta para elas, o abismo do medo, da vergonha, da repulsa a si mesmas.
Uma parte da sociedade e dos adultos lhes ensinam a reproduzirem o racismo. Certa vez, em uma aula de dança que eu ministrei, escutei uma menina negra, de mais ou menos 7 anos, dizer: “Negro é feio!”. Ao escutá-la, parei por alguns segundos, sentindo o peso de sua fala e tudo o que ela acarretava consigo. Recordo-me que tentei dialogar com ela, questionando-a, mas sem forçá-la a um direcionamento, pois essa é uma desconstrução dolorosa e tem raízes estruturais. É necessário escutar as crianças, para junto às mesmas, desenvolver diálogos e práticas em prol de uma equidade racial. Meus estudos e trabalhos são pensados a partir de ensinamentos e práticas afro-referenciadas para, afirmativamente, possibilitar que crianças negras e não negras possam ver, sentir, vivenciar e conectar-se, com outros valores e visões de mundo. Nossas heranças africanas e afro-brasileiras que se opõem à lógica dominante de brancos e que sempre nos foi contada historicamente como verdadeira.
Precisamos construir uma visão crítica e refletirmos sobre nossos privilégios, enquanto pessoas de tom de pele mais claro, sejam brancos ou mestiços (como me percebo, sem romantização e compreendendo este processo marcado por violência e invisibilização da negritude), considerando que nossa sociedade se estruturou à custa de muito sangue e suor de nossos ancestrais negros e indígenas. Neste sentido, convido-as (os) para algumas indagações: O que fazemos em nosso cotidiano em relação a essas causas? Como nos relacionamos e tratamos pessoas negras? São relações afetivas, de solidariedade e de respeito ou de submissão, exploração e discriminação? Que histórias lemos ou contamos para as crianças? Apenas aquelas com princesas (es) predominantemente brancas (os), loiras (os), olhos azuis? Conhecem as autoras Edsoleda Santos, Heloisa Pires Lima, Kiusam de Oliveira e suas produções literárias? Que filmes assistem com suas filhas (os)? Conhecem “Kiriku e a Feiticeira”? Você, de fato, acredita ou age como se o racismo fosse apenas para ser pensado e questionado por pessoas negras? E se fosse uma criança da sua família a ser morta?
Sinto a importância do engajamento à luta antirracista, pois comigo também carrego a força de minha ancestralidade e espiritualidade negra, e, são as/os Orixás que me guiam nessa jornada. Aprendi com o professor Olùkó Bàbá Ònà – Dr. Carlos Henrique Veloso -, a palavra Òwèrè que, em Yorubá, significa luta e esforço para recuperar a si mesmo. Sua narrativa menciona: “Esforce-se para ser melhor. Esforce-se para sair da condição de submissão. Faça valer a pena o esforço, as lutas, as lágrimas, o sofrimento, a resistência dos seus ancestrais”.
Compreendi, dentre muitas coisas, com esta ancestralidade e espiritualidade, que as crianças são sagradas, não no sentido de serem pueris ou intocáveis e, sim, porque podemos aprender muito com elas, desde que se estabeleça uma relação de troca e de ensinamentos mútuos, além da dimensão do afeto. As crianças são o eterno retorno dos aprendizados dos mais velhos e, quando as escutamos e valorizamos a vida junto às mesmas, criamos uma conexão com os nossos ancestrais, que perpetuam valores, saberes, conhecimentos. Elas constroem suas culturas infantis, pautadas nas giras e brincadeiras, no Xirê, de um Ofò (Encantamento) que permite ao Ara (Corpo), que Inú mi dùn (O meu interior ficou doce).
Para terminar esta leitura com mais leveza, desejo que, ao dormir, possamos sonhar e escutar o som do tambor mágico dos meninos príncipes negros Ibejis. Na história Yorubá, de tanto tocar o instrumento e trocar de lugar, quando um se cansava e por serem gêmeos, enganaram Icu, a morte, que não conseguia parar de dançar. A morte, que antes assombrava e colocava armadilhas para as pessoas, se rendeu, após um acordo feito com os meninos. Deixou o povoado em paz e não mais levou consigo as pessoas antes do tempo delas morrerem. Ibejis são as crianças que, com sua sabedoria, enfrentaram a morte como nenhum adulto soube enfrentar. Elas resistem e lutam, guiadas pela ancestralidade que orienta suas escolhas e trajetórias. Caminhos que, em meio a dores, possam haver muitos doces e travessuras, menos mortes prematuras e mais renascimentos.
Escrevo este texto em memória do pequeno Miguel, que seus ancestrais possam acolhê-lo, amenizarem a dor de sua família e que a justiça seja feita, pois “Vidas negras importam! Infâncias negras importam!”