(Foto: Nah Jereissati/ADUFC-Sindicato)
Os ataques ao financiamento das universidades públicas no Brasil foram intensificados a partir de 2016, com o governo Temer. O desmantelamento foi agravado na gestão de Jair Bolsonaro, que tentou emplacar o Future-se (PL 3076/2020), um projeto que abria margem para a privatização indireta no ensino superior público. Apesar de a iniciativa ter sido rechaçada pelas universidades federais, diversas administrações superiores, incluindo da Universidade Federal do Ceará (UFC), avançam com outros dispositivos legais para trazer o capital privado para dentro dessas instituições. Um desses mecanismos é a aprovação de fundos patrimoniais, ou endowment funds, que abre margem para a financeirização das universidades, ferindo o princípio da autonomia e do interesse público.
O tema começou a ser discutido no país a partir da década de 1990, mas o ano de 2018 é considerado um marco legal, com a MP nº 851, editada por Michel Temer, que resultaria na Lei 13.800/2019. A legislação foi criada no contexto do incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e da necessidade de reconstrução do equipamento. O texto da lei “autoriza a administração pública a firmar instrumentos de parceria e termos de execução de programas, projetos e demais finalidades de interesse público com organizações gestoras de fundos patrimoniais”. Entretanto, pesquisadoras de diferentes universidades ouvidas pela ADUFC questionam a falta de debate e de transparência com que a temática tem invadido a universidade pública e apontam semelhanças com o Future-se.
A UFC tornou-se uma das universidades a regulamentar o fundo patrimonial, após aprovação da matéria no Conselho Universitário (CONSUNI), no último dia 9 de fevereiro. O processo foi conduzido sem debate nem aprofundamento. Ficaram sem resposta perguntas como: que empresa vai gerir o fundo? Como será o processo de escolha? Um fundo privado não pode colocar a universidade refém do capital de empresas? Como será mantida a autonomia dos pesquisadores e da universidade? Os questionamentos foram feitos pela Profª. Heulália Rafante (Departamento de Fundamentos da Educação/UFC), representante docente no conselho superior, ao perceber a rapidez com que um tema de tamanha relevância para a universidade foi encaminhado pelo colegiado.
Apesar de a docente ter sugerido a retirada de pauta da resolução e a ampliação do debate com a comunidade acadêmica, o texto foi aprovado com ampla maioria, mesmo a reunião do CONSUNI tendo sido convocada com antecedência de apenas 24 horas. As informações foram registradas em ata, a pedido da conselheira. “Ao abrir o financiamento privado, perde o interesse público e prejudica umas das funções principais da universidade, que é a função social, de estar a serviço da sociedade e não do capital privado”, ressalta. “Isso fere a autonomia da universidade, que não atende às suas reais demandas e perde a isonomia entre todas as áreas de conhecimento”, acrescenta Heulália. Conforme informou a intervenção da UFC, uma fundação será definida para gerenciar o fundo e será criado um conselho para administrá-lo.
Entre os argumentos das universidades para avançar com esses fundos, está o exemplo do modelo norte-americano de financiamento, como a Universidade de Harvard. “É o processo de privatismo exaltado do colonialismo educacional no Brasil no processo de transplantação de modelos internacionais”, avalia Viviane Queiroz, autora da tese de doutorado “Fundo patrimonial (endowment fund) no Brasil: uma agenda do capital para as universidades públicas” pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Na prática, é uma espécie de “filantropização via privatização” ou “filantro-capitalismo”, explica a pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da Universidade Federal Fluminense (UFF) ao citar os estudos da Profª. Virgínia Fontes (UFF) sobre a “mercantilização e o empresariamento da filantropia no Brasil como aparelhos de hegemonia”.
Terceirização da gestão universitária
Para as pesquisadoras, os argumentos de que não há recursos públicos para o financiamento do ensino superior ou de que as universidades não podem ficar reféns dos repasses do governo federal são usados como falácia para privatizar a educação. “Sempre justificam o subfinanciamento das universidades, a arrecadação caindo, o que nem sempre é verdade (…). O sucateamento é o caminho da privatização e da financeirização, que é algo novo”, destaca a Profª. Carolina Catini, do Departamento de Ciências Sociais e Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), uma das instituições de ensino superior que implementam o fundo patrimonial.
Segundo o Monitor de Fundos Patrimoniais no Brasil, divulgado pelo IDIS – Desenvolvendo o Investimento Social, há 58 endowment funds registrados no país atualmente, sendo pelo menos 18 referentes a universidades. “Para gerir a captação e o rendimentos desses fundos, bem como para fazer a gestão do empreendedorismo universitário, o programa previa a contratação de uma prestadora de serviços privada, uma organização social com ampla atuação – do ensino até o aprimoramento dos modelos de negócios de incubadoras e startups”, detalha Carolina Catini. “Não significaria nada menos do que a terceirização da gestão das universidades”, complementa.
Conforme a docente da UNICAMP, há outros aspectos a serem considerados, como os critérios de escolha das pesquisas financiadas pelos fundos. Como a presença das empresas impõe uma lógica de mercado à universidade, é provável que a distribuição desses recursos seja desigual. “A ideia é que se possa investir em capital aberto, a universidade viraria cotista de empresas, e os rendimentos voltariam como fundo da universidade para ensino, pesquisa e extensão”, detalha. “O problema é que a área de humanas, por exemplo, teria muito menos capacidade de atrair esses investimentos. Nós não estamos conseguindo fazer parte desse processo de decisão, de rentabilização, que sempre tem riscos”, aponta a Profª. Carolina Catini.
A pesquisadora Viviane Queiroz avalia que esse sistema fortalece o “processo de exploração da força de trabalho em que os pesquisadores ficam a serviço dessas empresas, que buscam lucrar com apropriação do conhecimento produzido na universidade pública”. Além disso, reforça que os recursos recebidos são proporcionalmente baixos em consideração aos benefícios obtidos pelas empresas, como os incentivos fiscais oferecidos pelo Estado. “A impressão é de que se ataca a universidade para ter uma desculpa viável para privatizar. É justamente isso”, conclui.
Entre os dispositivos que ela atribui como catalisador dos fundos privativos está a Emenda Constitucional 95, promulgada por Michel Temer em 2016, que limita o teto de gastos sociais. Com isso, setores essenciais como a Educação ficam descobertos, o que alimentaria a necessidade dessa busca pelo capital privado. “Essa política aprofunda-se no governo de Jair Bolsonaro, que estabelece como alternativa os fundos patrimoniais, evidenciando uma nova face privatista e de desmonte das universidades públicas brasileiras”, pontua Viviane Queiroz.
Após a aprovação da resolução criando o fundo patrimonial na UFC, haverá uma chamada pública para a definição da entidade que vai gerenciá-lo, necessariamente uma “instituição privada sem fins lucrativos”, responsável pela gestão das doações. A ADUFC seguirá acompanhando os próximos passos do processo para cobrar transparência e a garantia da autonomia científica, orçamentária e política da universidade.