Com o tema “O papel dos militares na política no Brasil”, a ADUFC deu continuidade, na última terça-feira (14), ao ciclo de debates “Democracia e emancipação: o papel da educação e da classe trabalhadora”. O diálogo ocorreu na sede do Sindicato em Fortaleza na data de cinco anos dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes, ainda sem resposta e sem justiça. A exposição de abertura foi de Rodrigo Lentz, professor da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Ciência Política, que contextualizou a atuação dos militares na política desde o Império no Brasil. “A ditadura militar não foi uma exceção (no vínculo entre polícia e política), e sim uma regra. Desde o início da República, os militares sempre tiveram participação na política, ora como protagonistas, ora como coadjuvantes, ora em conflito com a elite econômica, ora em aliança”, ressaltou.
O tema também foi debatido por Ana Vládia Holanda, doutora em Psicologia, professora universitária da UniChristus e Uni7 e integrante do Fórum Popular de Segurança Pública; e Alessandra Felix, pedagoga por formação, fundadora do Coletivo Vozes e integrante da Frente Estadual pelo Desencarceramento. Esta última trouxe uma análise mais prática do sistema de segurança pública no Brasil a partir do olhar de quem convive e enfrenta as violências da periferia urbana. “Hoje as mulheres das periferias têm dois duelos: manter os filhos vivos e fora das prisões”, resumiu Alessandra, que atua na coordenação da Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado.
Ana Vládia Holanda apontou seis conceitos que justificam a política criminal perante a sociedade: legitimidade (do Estado), o princípio do bem e do mal (aquele que delinque é negativo e disfuncional), culpabilidade (o delito é algo interior e reprovável), finalidade, igualdade (a ideia de que somos todos iguais) e interesse social. Segundo ela, esses valores são encarados como homogêneos e universais, o que não se configura na prática. “O crime é uma construção social, portanto é uma definição política”, disse. “Nós já tivemos pena de morte e era voltada aos líderes das insurreições (pré-República). Não era crime a escravidão, mas justamente quem se insurgia contra esse sistema”, complementou.
Na avaliação de Rodrigo Lentz, é preciso refletir sobre a própria função histórica do Exército Nacional no país. “Os militares, dentro de todo esse processo, se dedicaram à segurança interna, à manutenção de uma ordem interna de classe”, ressaltou o pesquisador e autor do livro “República de Segurança Nacional: militares e política no Brasil”. Segundo ele, exceções a essa regra foram as guerras da Cisplatina e do Paraguai, quando a Força de Segurança Nacional teve “inimigos” externos. “De modo geral, o poder policial foi usado dentro do país para manter a ordem”, reforçou.
O docente da UnB acrescentou que esse militarismo na política esteve muitas vezes ligado a uma ideia de humanismo cristão conversador, uma doutrina baseada essencialmente em um fundamento religioso e que ainda sobrevive. “Essa frase ‘Deus acima de todos’ (slogan de campanha e governo de Bolsonaro) não era de um candidato, mas de uma organização, de uma visão de mundo, baseada numa espécie de racionalismo cristão”, associou. Esse poder nacional, conforme Lentz, reproduz uma ideologia dominante, que está na base ontológica de poder da doutrina e se baseia em cinco elementos: expressão política, militar, econômica, psicossocial e ciência e tecnologia – esta última a partir dos anos 1980.
“Nós duelamos para manter nossos filhos vivos e livres”
Alessandra Felix centrou parte de sua fala na situação dos centros socioeducativos, pois tantas vezes constituem o início do caminho dos jovens que acabam no sistema prisional, cuja maioria é negra, pobre e periférica. “Eu tenho vergonha de morar num estado que tem mais centros socioeducacionais e prisões do que equipamentos culturais (…). Enquanto as mães tradicionais (de fora da periferia) lutam para que seus filhos terminem a faculdade, nós duelamos para manter esses meninos vivos e livres”, destacou, apontando como inadmissível a morte de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, sob a tutela do próprio Estado.
Ana Vládia Holanda, do Fórum Popular de Segurança Pública, citou o pensamento do estudioso Martín-Baró sobre a “militarização da mente”, que é a generalização de esquemas de pensar e agir da ideologia militar para toda a vida social. Isso levaria à banalização das mortes provocadas intencionalmente produzidas por situações de prolongamento da lógica de guerra. “A polarização social leva a esse sentimento do nós, cidadãos de bem, contra eles, traficantes. E o inimigo não pode ser humanizado senão a gente não combate. É daí que parte a autorização de um genocídio (focado em determinados estratos sociais) desde que a gente compreende a formação desse país”, explicou. Ela pontuou lembrando na urgência em se debater o aumento das milícias no Brasil e cobrou o que todo mundo quer saber: quem mandou matar Marielle e Anderson?
Entre os desafios para enfrentar esse cenário, defendeu Rodrigo Lentz, é preciso que outros setores da sociedade se apropriem do debate sobre a segurança pública, hoje concentrada em grupos punitivistas e de extrema-direita. Ele sugere cinco ações: teste de realidade – nem subestimar nem superestimar a organização política militar; debater alternativas para pensar a segurança nacional dentro da democracia; pautar um projeto de nação focado no desenvolvimento nacional; reforma do Estado; e engajamento social.
Assista ao debate na íntegra no canal da ADUFC no YouTube:https://www.youtube.com/embed/d_YHjg9XjxY