Laboratório sem recursos suficientes, cortes de exames essenciais e transferência de serviços para a atenção básica de saúde. Esses são o resultado do que parte do corpo funcional do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC/UFC) denuncia e classifica como “preocupante”, após novas regras aplicadas pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), que administra o equipamento. As medidas atingem todos os usuários, principalmente os mais vulneráveis.
Em ofício encaminhado, no último dia 1º/9, às chefias de Divisões/Setores e Unidades, dos Serviços Cirúrgicos e dos Serviços Clínicos do HUWC, a Ebserh anunciou mudanças classificadas como “Adequação dos Exames Laboratoriais Ambulatoriais”. Na prática, alguns exames obrigatórios de pacientes do HUWC que sempre foram realizados naquele equipamento começaram, desde o dia 8/9, a ser feitos na rede de atenção básica de saúde. “Um verdadeiro retrocesso que compromete, inclusive, o ensino”, aponta o Prof. Roberto da Justa, do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina (Famed) da UFC e diretor de Patrimônio da ADUFC-Sindicato.
O documento informa que todos os pacientes que necessitarem realizar exames laboratoriais para renovação dos protocolos de medicamentos incluídos no Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) deverão agendar exames laboratoriais na Rede Básica de Saúde. A Ebserh entende como “necessária” a medida, por conta do “aumento na demanda de pacientes ambulatoriais percebido como parte das ações exigidas para o funcionamento adequado” da instituição e da superação da Programação Orçamentária contratualizada com a Secretaria Municipal da Saúde (SMS).
Os pacientes que tomam estes medicamentos precisam apresentar exames atualizados toda vez que vão ao Sistema Único de Saúde (SUS) para pegar mais remédios. “Estes exames obrigatórios sempre foram feitos no HUWC, para o uso de medicamentos fornecidos pelo próprio hospital”, lembra Roberto da Justa. O médico, a exemplo de outros profissionais de saúde da instituição, manifestaram preocupação com diversos pacientes atendidos no equipamento, a exemplo daqueles que sofrem de alzheimer, parkinson, glaucoma, hepatite C, esquizofrenia, artrite reumatoide, diabetes e transtorno bipolar, além de pacientes transplantados. Muitos deles, idosos.
“Cenário de aprendizagem comprometido”
Uma das principais preocupações dos/as profissionais que atuam no equipamento de saúde é que a medida atinge, primeiramente, os usuários do SUS, restringindo e dificultando o acesso. “Isso é péssimo pras pessoas que dependem do SUS para uso de medicamentos daquela lista de alta complexidade. E isso também atinge o ensino e a pesquisa. Porque alunos da graduação e residentes – a residência médica e outras residências multiprofissionais – acabam tendo um cenário de aprendizagem comprometido”, reflete o Prof. Roberto da Justa.
Os usuários mais vulneráveis também são fonte de preocupação para a continuidade de tratamentos. “Os usuários que têm algum recurso vão acabar fazendo os exames de alguma forma no serviço particular, pagando 100, 200 reais. Fazem os exames, apresentam no dia da consulta e têm acesso aos remédios. Mas e aqueles usuários mais carentes?”, questiona o médico. Roberto da Justa alerta para a possível falta de acesso rápido a exames essenciais prejudicar o acesso aos remédios a que os/as pacientes têm direito. “Agora, a Ebserh manda os pacientes realizarem os exames na atenção primária. Sabemos que ela é, muitas vezes, de difícil acesso. Os pacientes precisarão se consultar novamente, muitas unidades estão sem médicos e nem todo exame está disponível”, pontua.
O dirigente da ADUFC também manifesta a preocupação do próprio sindicato dos docentes diante da crise na Ebserh e nos hospitais universitários federais, já que ela interfere diretamente nas atividades de ensino, pesquisa e extensão do cotidiano de professores e alunos – no caso do HUWC, os estudantes da UFC. “A Ebserh é uma empresa federal. Como os cortes do governo Bolsonaro são cada vez maiores, o sistema todo adoece, fica sucateado. Inclusive salários de trabalhadores e, naturalmente, a parte técnica, de exames, insumos, entre outros”, afirma, acrescentando a “suma importância” que os hospitais universitários federais assumem na formação de recursos humanos para o próprio SUS, além de serem “fundamentais para a produção de conhecimentos e pesquisa”.
Há, ainda, questionamentos internos no equipamento de saúde sobre em que contexto se deu essa medida e como ela foi discutida. E sobre a realidade financeira da Ebserh local e dos laboratórios dos hospitais universitários. Roberto da Justa lembra ainda que, antes da instalação da Ebserh, as discussões passavam pelas faculdades de Medicina (Famed) e de Farmácia, Odontologia e Enfermagem (FOE). O ofício enviado no dia 1º/9 às chefias do HUWC aponta ter sido realizado um “amplo estudo de demandas destes exames, sendo necessária essa adequação”. Segundo o docente, a ADUFC solicitará à EBSERH formalmente este estudo e cópia do citado contrato entre Ebserh e SMS, para avaliar os termos e as condições. A ADUFC solicitará, ainda, esclarecimentos sobre quais medidas estão sendo adotadas para ampliar o acesso a exames pelos usuários do SUS no HUWC.
O que é o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica
Desde 2009 regulamentado pelo Ministério da Saúde (MS), o CEAF tem se consolidado como estratégia importante para a garantia do acesso a medicamentos no SUS. Foi construído, de acordo com o próprio MS, a partir da necessidade da ampliação do acesso aos medicamentos e da garantia da integralidade de cobertura do tratamento medicamentoso. Atualmente, o CEAF, atende 102 condições clínicas preconizadas em 93 Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas.
O elenco atual do CEAF é composto por 174 medicamentos em 335 apresentações farmacêuticas, indicados para o tratamento das diferentes fases evolutivas das doenças contempladas – a lista pode ser consultada na “Relação Nacional de Medicamentos Essenciais”, publicada este ano pelo MS: são os medicamentos do anexo III do documento (a partir da página 104). Eles são distribuídos pelo SUS pelo próprio Hospital Universitário. A diferença é que, agora, o acesso a estes está sendo dificultado, como sugerem as denúncias feitas à ADUFC.