Em decisão liminar, o juiz Luís Praxedes, da 1ª Vara Federal do Ceará, suspendeu o trâmite de uma sindicância acusatória, no âmbito da Universidade Federal do Ceará, contra a Profª. Rosa Primo, lotada nos Cursos de Licenciatura e Bacharelado em Dança da UFC e diretora de Atividades Científicas e Culturais da ADUFC no biênio 2019-2021. Após mensagem postada em seu perfil privado do Instagram, ela foi alvo de censura e intimidação por parte do vice-reitor da UFC, Glauco Filho, que atuava como reitor em exercício à época e constituiu Comissão de Sindicância para investigar a conduta da docente.
O argumento utilizado pela administração superior da UFC para perseguir Rosa Primo foi o suposto descumprimento da Lei 8.112/1990, que trata do regime jurídico dos servidores públicos federais, e da nota técnica 1556/2020 da Controladoria Geral da União (CGU). Esta última discorre sobre a responsabilização disciplinar de servidores públicos e tem sido utilizada por interventores do governo Bolsonaro nas universidades federais para intimidar e perseguir docentes e técnico-administrativos/as. “Hoje em dia está mais claro que essa intervenção (nas universidades) ocorreu como uma espécie de controle dos ambientes universitários”, diz a Profª. Cynara Mariano, do Curso de Direito da UFC e integrante do Observatório do Assédio Moral nas Universidades Federais do Ceará no âmbito da ADUFC.
Ao fazer críticas nas redes sociais à postura do interventor da UFC, Cândido Albuquerque, Rosa Primo foi acusada de “promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição”, conduta que, segundo o argumento da Reitoria, teria resultado em ofensa à honra da Universidade Federal do Ceará. Na decisão judicial, que atende a pedido liminar em mandado de segurança impetrado pela assessoria jurídica da ADUFC em defesa da docente, o magistrado observa que a professora fez o comentário no âmbito de sua vida pessoal, em um perfil restrito de seguidores, o que não representa qualquer prejuízo à imagem da universidade.
“Para que a servidora pública fosse responsabilizada administrativamente por manifestações de desapreço em relação à entidade pública a que está vinculada deveria estar no desempenho do cargo ou função e (…) esta deveria estar no recinto da repartição pública, o que não restou evidenciado e, ainda, no exercício de sua função pública, o que, também, não restou demonstrado”, diz a decisão. “Ademais, não vislumbro na referida postagem qualquer ato reflexo capaz de causar prejuízos à imagem da Universidade Federal do Ceará”, acrescenta.
Praxedes recorre à liberdade de expressão garantida na Constituição Federal de 1988 para rechaçar a acusação contra Rosa Primo. “Inicialmente, é necessário que se tenha em mente a Carta Magna de 1988 assegura em seu artigo 5º, inciso IV, a ‘livre manifestação do pensamento, vedado o anonimato’. Pondere-se que o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADPF 130, asseverou que a liberdade de expressão está a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação, assegurando-se, nos casos em que a livre manifestação do pensamento viole direito de terceiro, posterior indenização pelos danos acarretados”, escreveu o juiz.
Na decisão, o magistrado também explicita as distinções entre a Universidade, no âmbito institucional, e os seus gestores. Segundo ele, o vice-reitor “promoveu uma interpretação equivocada no caso concreto, uma vez demonstrado de forma inequívoca que a manifestação de desapreço para com o então gestor da UFC, que não se confunde com a entidade pública, foi realizada em sua esfera privada e, portanto, distinta do ambiente da universidade a qual está vinculada”.
Já a Profª. Rosa Primo aponta que a perseguição da UFC não se resume à censura, ao ataque à liberdade democrática e à inconstitucionalidade. “Essa violência vai além disso, nos toma como perspectiva do medo, da impotência, da fragilidade. Trata-se de mecanismos invisíveis, forças invisíveis, que agem nos paralisando, comprimindo e diminuindo a potência de nossa corporeidade”, avalia. “Tais forças, por mais violentas que sejam, sustentam os fatos, nos assegurando de nosso compromisso com a democracia e com o Estado democrático de direito”, acrescenta.
A ex-diretora da ADUFC compartilha o receio de que intimidações dessa natureza resultem no silêncio e no apagamento das diferenças nos espaços universitários, “impedindo a voz que nos faz docentes de uma universidade pública e inibindo qualquer de nossos gestos frente ao autoritarismo e caráter abjeto de quem assim faz uso de sua condição: nomeado reitor da UFC pelo presidente Jair Bolsonaro, mesmo sendo o menos votado na consulta pública feita com professores, estudantes e servidores”.
No entanto, a docente reitera que está ainda mais engajada, coletivamente, na construção das diferenças. “Não calar é um dos caminhos para combater a violência. Continuaremos juntos e empenhados no compromisso ético que temos perante a Educação e a autonomia universitária. Já somos alguns a ter vivido tal sindicância e somos muito mais os que criaram o Observatório do Assédio Moral”, pontua Rosa Primo.
Lidianne Uchôa, advogada da ADUFC, relata que tem sido cada vez mais recorrente a necessidade da atuação da assessoria jurídica da entidade, seja no âmbito administrativo ou judicial, em defesa de docentes das universidades federais que têm sido alvo de atos acusatórios sem justa causa aparente. “É nítida a intenção persecutória e intimidatória na instauração da sindicância contra a Profª. Rosa Primo por ser crítica à administração da Universidade Federal do Ceará, o que, a nosso ver, configura abuso de autoridade e não pode ser tolerado em um Estado Democrático de Direito”, destaca.
Judiciário reafirma direito à livre expressão nas universidades
Para a Profª. Cynara Mariano, a decisão do juiz foi “irretocável e irrepreensível”, porque protege a liberdade de expressão do professor enquanto cidadão. “A cidadania também é uma extensão da liberdade, da autonomia universitária, porque ela reflete um reposicionamento das instituições refratárias a um fascismo institucional que começou a tomar de assalto as universidades a partir da fascistização do poder Executivo por meio do presidente da República”, explica.
Apesar de o caso que envolveu a docente não ter ocorrido no ambiente da universidade, Cynara Mariano chama atenção para o teor da ADPF 548/2020, relatada pela ministra do STF Cármen Lúcia, que destaca “a liberdade de expressão de pensamento, a liberdade acadêmica e a autonomia universitária em sua dimensão didático-científica”. “O Judiciário está demonstrando que nos ambientes universitários não há espaço para perseguições políticas, para intimidação, assédio moral, e tudo isso tem aumentado, porque o fascismo atravessa tudo, todas as construções civilizatórias, até o próprio mercado”, reforça.
Na decisão judicial, a UFC ainda foi intimada a anexar virtualmente, no prazo de dez dias, a íntegra do processo administrativo que originou a sindicância contra a Profª. Rosa Primo.
(*) Leia a íntegra da decisão judicial AQUI.