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MEMÓRIAS DE QUARENTENA 68: O MUNDO À REVELIA

Leandro Proença (Professor da UNILAB).

“… Mundo à revelia? Mas, Riobaldo, desse jeito mesmo é que o mundo sempre esteve…” João Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas.

Memórias parecem ser muito pouca coisa pra combater a barbárie. Todavia, são as memórias que preservam o afeto das coisas que vivemos; o que não é lembrado, é como se não tivesse existido. E guardar memórias também é um campo de disputa. Uma muito feliz citação do Kundera, d’O livro do riso e do esquecimento, formula a ideia de que a luta “contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. Contra quais esquecimentos, porém? Ausências e esquecimentos costumam ser bem seletivos…

“Ah, lembra dele? Tá internado; covid. Bem grave seu estado”. Encerrou a ligação. Me lembro bem dele, apesar de há muito que não o vejo, ou mesmo saber notícias suas. De repente, alguém que passou tanto tempo alheio aos meus pensamentos, tornou-se o centro de urgentes preocupações. No caso do pior, com quatro filhos pra criar, sua esposa sozinha enfrentaria uma condição bastante comum a milhões de mulheres nesse país. Essa normalização, contudo, seria nada diante da sua dor e das suas dificuldades.

Eu tinha prometido a ele que voltaria, com cachaça. Mas ele não botou muita fé. Ainda não sei seu nome; mas sempre levo muito a sério minhas promessas. Voltei, com a cachaça. Fiquei um tempo ali conversando com ele, a metro e meio de distância. Ele não tinha álcool gel pra fazer a assepsia da garrafa, mas o álcool limparia por dentro – o que era bem melhor, ele me garantiu. Aqui, nunca faz frio: lembro-me de ter dito isso várias vezes para pessoas que do sul e do sudeste me perguntaram variedades de coisas sobre a minha vida numa região diferente. Foi estranho ouvir dele que a cachaça ajudaria a encarar melhor o frio daquela noite. Sob um dossel improvisado na copa de uma mangueira, podem ser frias as noites. Ele não usava máscara.

Ela estava se mantendo em isolamento bastante a sério. Já eram quase quatro meses sem pisar nas ruas, e ela gostava tanto das ruas. Gostava de gente, e não ter reais contatos era a parte que mais doía. Mas aquilo haveria de passar, ela dizia a si mesma e às pessoas com quem mantinha contatos virtuais, e logo poderia fazer as coisas todas que gostava tanto. Achou bastante estranho quando tocou o interfone. Já tinha avisado que não receberia ninguém. O porteiro avisou que o rapaz não estava muito bem, que talvez precisasse de ajuda. Ela olhou pela janela, e reconheceu o colega. Autorizou que subisse. Ele, que de fato não estava bem, dizia que não aguentava mais tanto tempo de isolamento, sem as intimidades que um homem precisa tanto. Ela não consentiu. Porque podia, ela ficou em casa, e conseguiu ajudar solidariamente na proteção coletiva contra a disseminação do vírus. O mal a encontrou em casa.

Vi sua foto nos stories. Estava na praia, era domingo. No dia seguinte, jornais estampavam escandalosas fotos da falta de responsabilidade das praias lotadas. Poderia ter mandado uma mensagem reprovando sua ida à praia, a foto sem máscara. Não o fiz. Acompanho suas postagens. Formado no ensino superior contra todas as possibilidades, trabalhando de motoboy confirmando várias previsões. Ele me procurou há algumas semanas: “professor” nunca consegue me chamar de outra forma. “Professor, a polícia matou meu amigo. Ele queria fazer o isolamento, pra cuidar da mãe dele; mas precisava trabalhar, pra cuidar da mãe dele, professor. Ele fez o teste do covid, que ele achava que ia ser bom na empresa, provar que tava limpo. Ele tava limpo, professor. Ele tava indo pra casa, falar pra mãe dele que tinha conseguido o emprego”.

Há muitas razões pra odiar essa pandemia. O desafio de não morrer, porém, pra algumas pessoas, vem de muito antes. Ao expor as veias abertas de um mundo que está existindo à revelia, importa odiar, e combater, todos os esforços para manter firmes suas cruéis estruturas, as mesmas que ajudam a pandemia a matar mais.

Liguei para perguntar sobre sua tia, a que gosta de carnaval. “Cara, nem te conto. A tia mandou avisar geral que não quer ninguém indo muito na casa dela, que já tá velha e é grupo de risco. Só que é o seguinte. Ela tinha começado a namorar antes da pandemia, e chamou o tal namorado pra ficar lá com ela enquanto durasse tudo isso. Ela até comentou que tá se sentindo mais jovem”.

Contradições de contradições. A quarentena não facilita, e parece interminável. Essa coisa toda ainda vai demorar bastante. Enquanto se espera, é preciso viver. Resistir à pandemia, lutar contra a barbárie. É preciso guardar bem as memórias; cuidar dos afetos.

Seção sindical dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará

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