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MEMÓRIAS DE QUARENTENA 66: DA DESIGUALDADE QUE FAZ MORRER À REDE DE SOLIDARIEDADE QUE FAZ VIVER

Jean Borges (Psicólogo – Projeto Abrace, OPN; Membro da Rede DLIS do Grande Bom Jardim e do Vieses – UFC)

Mês de Março de 2020. Parecia mais um mês que se iniciava como os anteriores. As urgências diárias ditavam o ritmo dos nossos corpos. O ano de 2020 trazia expectativas pessoais e profissionais. Um novo emprego como Psicólogo, a qualificação de mestrado que se avizinhava. Enfim, havíamos superado o ano de 2019 e estávamos de pé, apesar das feridas de um ano complicado e de tantas perdas. Muitos desafios nos esperavam. Diminuir o número de juventudes negras assassinadas, sobretudo em nossas periferias urbanas poderia ser um objetivo. Permanecer nas lutas por políticas públicas no território do Grande Bom Jardim não abriríamos mão. Nosso compromisso é com a possibilidade de construirmos vidas vivíveis, estancar a sangria para quem sabe, cicatrizar.

Uma notícia chegou de repente e nos pegou desprevenidos(as). Dessa feita, estávamos diante do desconhecido, do invisível, do aparentemente inominável. Imóveis diante de um vírus? A saída, segundo autoridades de saúde, era o isolamento social? Como assim? Não é possível. Quarentena? Estado de emergência mundial? Estado de sítio? Não sabemos se é para tanto ainda, respondia a imprensa. E nosso planejamento pessoal em relação ao ano que se enuncia há tão pouco tempo? Nossos objetivos e anseios como ficarão? A situação de aulas? Alguém pode informar? E nossos trabalhos? Nossas relações interpessoais? Nada de visita aos familiares e amigos por tempo indeterminado? Tempo, o que seria de nós? Sempre há o que questionar diante de situações adversas. Como nos isolaremos diante do que nem sabemos do que se trata? Exigimos resposta urgente! De quem?

Nesse momento, a Ciência não explicava ou dimensionava com profundidade os possíveis estragos decorrentes desse fenômeno. Algumas pessoas (e me incluo) buscavam explicações em Deus, nos santos, orixás, nos caboclos, guias espirituais, na natureza, ou em todos(as) ao mesmo tempo, nos agarrando em qualquer bote salva vidas ou ao menos numa pequena boia, nesse imenso mar de incertezas. Estávamos naufragando sem a possibilidade de salvação? Fazíamos orações ou rezas para todos(as) eles(as). Alguém haveria de nos responder nesse momento lancinante. Pedia também que não nos faltassem humanidade, amor, empatia e forças para as batalhas vindouras.

As primeiras respostas aceitas para acalmar minhas angústias diante do nada, surgiram a partir dos boletins epidemiológicos das Secretarias de Saúde do Estado e de Fortaleza. A pandemia se agudizava nas periferias: nelas se revelavam os efeitos mais cruéis da nossa desigualdade, renitentemente escondidos e negados pelas elites, mais uma vez estampada e evidenciada pelas vulnerabilidades e rastros mortes, herança de um sistema colonial, reveladas pela crise epidêmica.

O caos esgarçava diariamente, a chaga se abria, sangrava novamente. Pessoas morriam a cada dia, desconhecidos, colegas, amigos, parentes. A morte se aproximava diante das incertezas. Nos afetávamos e nos questionávamos, como sociedade civil, desde as primeiras notícias: o que será de nosso povo? O que será de nossas crianças? Como garantir que as pessoas se isolem socialmente nas suas residências para evitar transmissão do vírus, se em muitas casas há sete, oito pessoas em apenas um cômodo, e boa parte dos(as) moradores(as) são vendedores(as) autônomos(as), feirantes, ambulantes ou trabalham em casas de família?

O pico de disseminação da COVID-19 na capital cearense ocorreu no mês de maio, quando o GBJ já registrava 224 casos e 29 mortes. A violência contra crianças, adolescentes (150% segundo o Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência) e mulheres teve aumento exponencial. No mesmo mês, (dia 08), a Rede de Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável do Grande Bom Jardim (Rede DLIS – GBJ) e outros atores sociais criaram o Comitê Popular de Crise da COVID-19, tornando pública uma carta aberta com 40 subscrições, exigindo dos gestores a implantação de inteligência sanitária e medidas de isolamento mais rígidas nas periferias, em especial, no território do GBJ. O Brasil registrava mais de 100 mil casos de COVID-19 (testagem: 3%). Pesquisas relatavam número dez vezes maior. A média de mortes no Ceará, (3° Estado com mais mortes), em 21 de maio, ultrapassou 261 vítimas (Diário do Nordeste). Em meio a esse caos generalizado, lideranças do GBJ apontam a dificuldade de realização dos protocolos de distanciamento social e de higienização pessoal/familiar, dadas as precariedades habitacionais, vulnerabilidades sanitárias, pobreza extrema, informalidade, baixo acesso às políticas de saúde por alguns segmentos. Containers refrigerados enfileiravam corpos ao lado das UPAS e em outros equipamentos de saúde. Os cemitérios mostravam-se insuficiente para comportar tantos corpos amontoados em sacos plásticos pretos. Familiares e amigos eram impedidos (normas de segurança) de se despedir pessoalmente de seus entes queridos.

Movimentos e lideranças comunitárias reivindicavam: “Queremos tendas para atender os vivos, e não um contêiner para contar os mortos”. No sistema carcerário, os casos de COVID-19 eram subnotificados. Enquanto isso, os corpos se enfileiravam em containers refrigerados. As famílias eram proibidas de visitar e ter notícias dessas pessoas. Para essas vidas, tidas por abjetas, não havia quarentena. Jornais noticiavam: “Apavorados, presos enviam cartas de amor e despedida aos seus familiares” (Fonte: UOL). A população em situação de rua também padecia sem auxílio significativo do poder público. Ações dirigidas a esse segmento por membros da sociedade civil (“Banho com Dignidade”; distribuição de alimentos), trouxeram alento, segundo depoimentos de beneficiados(as). No transporte coletivo, passageiros reivindicavam contra a redução da frota e as aglomerações.

Pessoas continuavam morrendo em suas casas ou nas ruas, sem possibilidade de atendimento nas UPAS e Hospitais apinhados, intensificando nossa dor e angústia diante da impotência. Fome, violações e violências já existiam antes da pandemia como estruturas enrijecidas que esgarçavam o tecido social. A pandemia desvelou essa calamidade. Enquanto isso, grande parcela da população empobrecida voltava ao trabalho, com a justificativa irresponsável do Governo de reabertura “responsável”. Diante dessa constatação, o que fazemos de diferente? Ficarmos parados nunca foi nosso forte, portanto, vamos lutar!

Mesmo diante dessa conjuntura fragmentada, a Rede de solidariedade que nos une nas lutas em prol da vida engendrou muitas campanhas lideradas por movimentos, coletivos, entidades e instituições que já lutavam no GBJ, por exemplo: Campanha Adote uma Comunidade (Rede DLIS aliançada a 18 associações comunitárias e coletivos); Bom Jardim em Luta; Associação dos Moradores do Bom Jardim; Centro de Cidadania e Valorização Humana; Povos de Terreiro e Espaço Geração Cidadã de Arte e Cultura. Mais de 50.000 famílias (incluindo feirantes, ambulantes, catadores(as) e profissionais de saúde do território), foram beneficiadas direta ou indiretamente, com recebimento de cestas básicas, refeições prontas, EPIs, kits de limpeza, kits com materiais lúdicos para crianças, pias comunitárias, campanhas informativas de conscientização (bicicletas e carros de som, faixas, cartazes e lambes e sensibilização porta a porta nas comunidades).

Enquanto a periferia morre e luta mais uma vez, o que o Poder Público faz?

Seção sindical dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará

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