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MEMÓRIAS DE QUARENTENA 65: SOBRE FAZER PÃO E ESCREVER

Lara Denise Oliveira Silva (Socióloga, Pesquisadora e Professora da Rede Básica).

Um vírus – ser microscópico e só aparentemente insignificante – nos obrigou a um resguardo: tivemos que nos trancar do lado de dentro e para quem estava tão acostumando ao ir e vir, ao mundo da rua e a separar tão bem o espaço doméstico do lugar onde se “ganha o pão”, foi como um retorno forçado ao primordial: a casa, a casca, “a poética do espaço”, como diria Gaston Bachelard. A impossibilidade do isolamento para uma grande parcela dos que nem casa tem, revelou as tantas precariedades que marcam nossa sociedade, parece que abriram ainda mais a tampa da nossa “caixa de Pandora” e a conta das desigualdades sociais tem cobrado um alto preço. Permanecer tanto tempo assim em casa anda longe de ser romântico. Para uns, a convivência com o ambiente doméstico foi e é insuportável, violento e perigoso. Para outros tantos, foi a possibilidade da pausa, da reconexão com algo, senão perdido, ao menos desencontrado. Parece-me adequado, particularmente para o momento de agora, compartilhar uma desconfiança que carrego comigo e que, com o passar do tempo, vai transitando da hipótese para uma quase constatação: nos sempre voltamos aos começos. Deixe que eu explique melhor. No início da quarentena, abundaram nas redes sociais vídeos e tutoriais de como fazer pão. Houve quem chamasse de “modinha”, porque sempre haverá o cinismo, mas me chamou atenção esse ato de transformar o alimento e preparar algo que é tão primitivo e simbólico como o pão. Há uma história curiosa sobre Wright Mills, autor da “imaginação sociológica” em que ao ser visitado por um colega intelectual, este se surpreendeu com o fato de Mills ter preparado a refeição que oferecia, ao que o sociólogo respondeu, incrédulo: “quer dizer que você não prepara o próprio pão?”. Mais do que uma habilidade culinária, chama atenção o necessário uso das mãos na criação daquilo que sai de nos, arranca pedaços e encontra chegada no artesanal que se constrói a partir desse movimento. E parece que nos autorizamos também a escrever os dias, registrar em letras e palavras o que nos atravessa, um registro histórico e sentimental do isolar, das incertezas e da vontade de contar os dias. Escritores amadores, autores de suas histórias e amantes da grafia, tem passeado por esse gesto original de encurtar as distâncias entre cabeça, coração e as mãos. O isolamento segue em seu sexto mês, embora seja adequado aconselhar a rasgar o calendário. Para que a contagem dos dias se podemos reuni-los em narrativas amadoras e por isso mesmo, mais reais? Falar do que sentimos é como tirar a roupa na frente de outra pessoa. A gente se desnuda e assim, com a pele em carne viva, não há muito o que esconder. Para quem e o que você tem mostrado? Que objetos e detalhes da casa estão componho o acervo do seu museu dos dias de agora? Escreva!

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