Ativa há quase 40 anos, a Coordenadoria de Desenvolvimento Familiar (CDFAM) da Universidade Federal do Ceará (UFC) leva em sua história a busca pela integração plena entre universidade, atendimento básico de saúde de qualidade e acessibilidade à população que mais necessita. No último dia 17 de setembro, a CDFAM foi reinaugurada como Unidade Básica de Saúde (UBS), resultado de acordo firmado entre a Reitoria e a Prefeitura de Fortaleza em 2019, conseguindo, após 38 anos de luta dos/as docentes, técnico-administrativos/as e estudantes envolvidos no projeto, ampliar a sua oferta de saúde à comunidade do Planalto Pici. A integração da Coordenadoria como UBS, no entanto, não passou por diálogo aberto com as pessoas que o mantiveram em funcionamento através dos anos, trazendo mais uma assinatura autoritária do interventor da universidade.
Em 1982, sob o nome de Centro de Desenvolvimento Familiar (CEDEFAM), o projeto nasceu com recursos do Ministério da Educação conseguidos através do Programa de Ações Sócio-Educacionais e Culturais para Periferias Urbanas (PRODASEC). Em convênio com a Secretária de Educação do Ceará, o então CEDEFAM teve sua construção financiada nos terrenos da universidade para impedir a ocupação desordenada dos terrenos pertencentes à UFC na região, com a proposta de trazer assistência pública e gratuita à comunidade do bairro, integrando a participação de docentes e alunos dos cursos de Sociologia, Psicologia e Economia Doméstica.
Inicialmente, com a orientação pedagógica provida pela universidade, cursos de capacitação como corte e costura e lavanderia constituíram o Centro, buscando gerar renda sustentável às mulheres da comunidade dos arredores. Com a demanda delas, uma creche também foi desenvolvida com o apoio do CEDEFAM – primeiro, no próprio prédio, depois, com a maior participação da comunidade, a creche foi transferida para casa gerida pela associação comunitária.
Entre 1986 e 1987, com a entrada da Profª. Walda Viana no corpo docente do Departamento de Clínica Odontológica da UFC, o Centro ganha nova especialidade: os cursos de Odontologia e Enfermagem da universidade passaram a fazer parte do projeto e levaram suas disciplinas voltadas ao atendimento básico e estágios em saúde ao projeto –inclusive o curso de Odontologia, em uma reestruturação de seu projeto Extra Muros, que levava os discentes a praticar o atendimento em saúde básica em outras escolas de bairros periféricos da cidade. Com a adição, o CEDEFAM conseguiu ampliar ainda mais sua atuação: visitas comunitárias e trabalho social começaram a ser feitos, alcançando as comunidades do Planalto Pici, da Favela do Papoco e do Parque Universitário.
Com a continuação do trabalho e do desenvolvimento do CEDEFAM e a agregação de mais grupos de estudantes e professores/as, integram-se ao Centro o curso de Farmácia da UFC e o Horto de Plantas Medicinais e as Farmácias Vivas, projetos desenvolvidos e coordenados pelo Prof. Abreu Matos (1924-2008). A marcação de consultas odontológicas também foi agregada ao Centro, em conjunto com as associações comunitárias que auxiliam no direcionamento da comunidade aos atendimentos. Hoje, no entanto, apenas o Horto se mantém ao lado do projeto.
A transformação em Coordenadoria, agora vinculada oficial e diretamente à Pró-Reitoria de Extensão, aconteceu em 2018. Até então Centro de Desenvolvimento Familiar, sob a sigla CEDEFAM, o equipamento passou a se chamar Coordenadoria de Desenvolvimento Familiar (CDFAM) e a integrar oficialmente o organograma de coordenadorias da universidade. A Profª. Walda, que desde 2000 atuava como coordenadora do Centro, manteve esse cargo até 2019.
Pressa e falta de diálogo com comunidade marcam reinauguração como Unidade Básica de Saúde
O início da luta pela integração plena da CDFAM ao SUS data de cerca de 15 anos atrás, quando a Profª. Walda Viana e o Prof. Sérgio Luz expandiram seus esforços nesse sentido, elaborando diversas propostas de atuação como UBS. Entre 2009 e 2012, em parceria com a Prefeitura, a Coordenadoria recebeu duas equipes de saúde da família para auxílio no trabalho social, mas a parceria foi descontinuada e novamente a integração se estagnou.
Somente no segundo semestre de 2019 a assinatura de acordo entre a Prefeitura e a Reitoria foi realizada: a gestão municipal ficou responsável pela reforma dos prédios da CDFAM e a universidade, por equipar a unidade. No entanto, nesse período de um ano em que Prefeitura e Reitoria trabalharam na reforma da Coordenadoria, pouco se ouviu as equipes de professores/as, técnicos e estudantes envolvidas na manutenção da CDFAM – muito menos a comunidade, envolvida e beneficiária da integração ao SUS.
A reinauguração com o término da reforma, retorno de atividades e estruturação organizacional do, agora, Posto de Saúde foram comunicadas de último minuto tanto às equipes que já atuavam no CDFAM quanto à comunidade do Planalto Pici. A “pressa” na inauguração, sem diálogo e sem comunicação com quem de fato atua no local foi tamanha que, após quase duas semanas de sua reabertura, as equipes ainda se organizavam para voltar a atuar – e equipamentos e suprimentos faltavam para o seu funcionamento.
Davyane Farias, presidente da Associação de Moradores do Planalto Pici, diz que a comunidade só começou a ser ouvida após pressão do Conselho Local. “Houve três reuniões. A primeira somente com a gestão (da Prefeitura), sem comunicar ao Conselho Comunitário. Então, o Conselho chamou a gestão para somar juntos e não dividir, porque a forma como estavam levando antes não era o correto com a comunidade”, relata. Até então, a população não sabia nem quais áreas seriam abrangidas pelo novo posto. “Acabamos concordando porque trouxe benefício para gente, que é nossa prioridade, mas o processo não teve diálogo”, finaliza.
Outra preocupação de Davyane e das equipes que compõem a CDFAM é que a Unidade foi reaberta, também, sem acessibilidade. Há rampas nos prédios dos três blocos do local. A partir da entrada no terreno até os prédios, no entanto, há um longo caminho de terra fofa e grama, dificultando e até mesmo impossibilitado o acesso de pessoas com limitações motoras ao atendimento na UBS.
Docente do Departamento de Clínica Odontológica, o Prof. Sérgio Luz entrou na CDFAM ainda como estudante, em 1987. Ao retornar à UFC como docente, 10 anos depois, ele se reaproximou do projeto e segue lutando pela manutenção de sua atuação diferenciada em saúde básica até hoje. Há 33 anos atuando junto à CDFAM, ele reforça que “o processo de inauguração foi muito repentino, ficando somente nas mãos da Prefeitura e da Reitoria, sem diálogo com as equipes”.
Até mesmo a escolha do nome do Posto pouco passou pelo diálogo com quem, de fato, constrói a atuação da coordenadoria no dia a dia. Os/as docentes envolvidos foram convidados a indicar um nome: o consenso era homenagear alguém que houvesse feito história na CDFAM e chegaram ao nome da “Tia Mariquinha”, liderança comunitária que atuou na construção do Centro até seu falecimento. No entanto, nunca obtiveram resposta ou justificativa sobre a decisão final. A UBS acabou por ganhar o nome do Prof. Gilmário Mourão Teixeira, de relevante valor para a medicina internacional, mas sem identidade junto à CDFAM.
Apesar dos percalços, quem ganha é a comunidade
A agregação da CDFAM ao SUS e sua atuação como UBS mantém a raiz diferenciada com que nasceu quase 38 anos atrás. A proposta é que o Posto funcione com uma Unidade-Escola, integrando o suporte de equipes básicas de saúde com a recepção de estudantes, docentes e projetos de extensão da universidade para construir o atendimento básico no dia a dia. Somente no Departamento de Clínica Odontológica, são duas as disciplinas que levam alunos/as à CDFAM (Atenção Primária a Saúde e Estágios Supervisionados dos Serviços do Sistema Único de Saúde), além dos estágios e projetos de extensão do Curso de Enfermagem, que também atuam na unidade.
Ana Flávia Lima, dentista vinculada à Prefeitura de Fortaleza que atua na CDFAM junto às equipes da universidade, comenta a surpresa e o diferencial de atuação que a nova UBS terá: “Fomos pegos de surpresa. Queríamos ter tido mais tempo para desenvolver a ideia, nos organizamos, mas chegamos aqui. Seremos uma unidade diferenciada – uma Unidade de Saúde Escola. O intuito é receber os alunos com práticas e aprendizado, ter os serviços que já temos e mais os que a Unidade Básica de Saúde pode oferecer com a força da universidade. Estamos buscando um meio de como podemos beneficiar ao máximo da população”.
Responsável pela manutenção e coordenaria da CDFAM de 1987 até outubro do ano passado, a Profª. Walda Viana resume o sentimento da integração ao SUS: “Ainda não estamos com a Unidade completa com todos os seus equipamentos e existiram muitos percalços para conseguirmos chegar aqui, mas o pessoal está muito motivado em trabalhar com a comunidade. É um sonho realizado ver esse projeto finalmente atuando junto à saúde básica da população”.