I
Gicelia Almeida (Assistente Social, Conselheira do CRESS-CE, militante do FLAM e do NEABI- IFCE DMde Fortaleza).
Falar sobre as diversas lutas que travamos nesta pandemia. As subjetivas e as objetivas. Mas, sobretudo, a busca por manter a sanidade. Isso foi muito presente para mim.
As insanas lutas. Contra a pandemia?
Era um dia como outro qualquer, seguiam-se as reflexões sobre como construir as articulações de resistências contra um neoliberalismo, contra o fascismo que com muito mais força avançava suas investidas. Refletíamos sobre quais seriam as melhores táticas de luta para manter os sistemas públicos de educação, saúde, assistência, ambiente e outros. Como poderíamos unir pessoas para ampliar as lutas contra as opressões do sistema; os grupos das redes sociais estavam a toda força, muitos debates ocorrendo. Pessoas que se juntavam para resistir ao aumento dos ataques contra as políticas públicas, que foram duramente atingidas. As políticas de saúde mental, as quais estão deficitárias desde sua implantação na década de 1990, estavam na linha de frente. Seriam elas as mais progressistas entre todas as outras?
Entre 2016 e 2020, pelo menos 8 alterações na legislação foram emitidas pelo Governo Federal. As mudanças já vinham ocorrendo desde 2013; todavia os recursos para os sistemas de saúde pública jamais foram realmente levados a sério, isso pensando apenas a partir de 1988. A redução de recursos cria verdadeiras fissuras no sistema de cuidado substitutivo ao manicômio. Lembremos aqui os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, os quais aparecem como carro chefe de muitos serviços, que a Portaria 336/2000 criou para o cuidado das pessoas com transtornos mentais, uma Rede de Atenção Psicossocial que cuida dos indivíduos e apoia seus familiares.
Entre as alterações na legislação do sistema, temos: a ampliação de recursos para os hospitais psiquiátricos (2018), que desde a primeira década de 2000, não mais era central para a rede de cuidado da saúde mental, conforme Portaria Nº 10.216/2001; a EC 95 (2019) também gera redução de recursos para as políticas de saúde mental, pois congelou os gastos da União com despesas primárias por 20 anos, corrigidos pela inflação medida pelo IPCA. Nitidamente, o projeto que se instala, após o golpe antidemocrático em 2016, é de aumento do desmantelamento das políticas públicas, privatizações dos sistemas de proteção social e da precarização da vida, uma vida sem diversidades, uma necropolítica.
E então chegamos ao dia 17 de março de 2020, A pandemia muda tudo? Os governos estaduais, por decretos, determinaram as medidas de distanciamento social. A vida freou bruscamente para alguns, desacelerou outros, e para muitos ela apenas ficou mais difícil. Jamais se viu tal movimento; algo bem distante e temido, quase um delírio, se mostrava real. Todos deveriam se recolher e aguardar a pandemia passar, resistir para não tombar. Um atordoamento coletivo. As notícias para compreender o cenário vieram de todas as partes do Globo, as enxurradas de informações, estatísticas, explicações científicas. A negação da ciência também ocupou espaço nas mídias. A luta agora era para se manter distante do vírus e atentos às próximas orientações oficiais. O distanciamento social disparou gatilhos em muitos de nós. Tudo parou. Tudo mudou de plataforma, as redes sociais passaram a conduzir nossas horas, nossos corpos e corações. Lives regadas a álcool e a muitas informações, debates, disputas de narrativas. As novas organizações da velha vida passaram à esfera virtual. O real foi virtualizado.
Mas a vida tinha que continuar. Algumas categorias precisaram manter as estruturas funcionando, quase todos aqueles que atuam na esfera do cuidado tiveram que seguir a luta nos seus espaços de trabalho. Trabalhadores da saúde, entregadores, garis, trabalhadores do comércio, foram apontados oficialmente como essenciais para a manutenção da vida dos que estavam isolados. Outros não essenciais para a coletividade, mas que deixaram à vista a expressão egóica de grupos sociais, tiveram que se manter trabalhando, as empregadas domésticas.
A luta continuou para todos, mas naqueles primeiros meses, parecia que tudo estava suspenso, parecia que tínhamos nos tornado realmente iguais. Passado o susto inicial, a normalidade dos embates tomou uma nova normalidade. Começando por reconhecer que o Sistema Único de Saúde, apesar de frágil, era uma potência capaz de assegurar os cuidados de saúde à população. Ele foi a linha guia para a organização social. Não explodir os sistemas hospitalares era o horizonte.
II
Cláudia Oliveira (Profa. Depto História UFC e Fórum Cearense da Luta Antimanicomial)
Uma das lutas travadas por vários movimentos e coletivos, no dramático momento da pandemia, ocorreu em relação a mais uma medida autoritária protagonizada pelo Governo Federal em julho de 2020, com a publicação de documento referente à regulamentação do acolhimento de adolescentes em comunidades terapêuticas, aprovada pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD). O documento representa uma afronta tanto às diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), apoiadas no dever do Estado de cuidar e proteger crianças e adolescentes, como à Política de Saúde Mental, em garantia do fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no cuidado em saúde mental em liberdade. A rápida e urgente mobilização da sociedade civil produziu importante e contundente carta de repúdio ao CONAD, com a denúncia sobre a própria perda de legitimidade do Conselho, após a alteração de sua composição, com a publicação do Decreto Presidencial nº 9.926/2019, tornando-se uma mera extensão do Estado, violador de direitos humanos.
A carta de repúdio e denúncia tornou-se uma grata expressão da força da sociedade civil organizada, na medida em que possibilitou o envolvimento e a assinatura de mais de duas centenas de atores sociais e políticos, entre os quais associações, conselhos, comissões, parlamentares, sindicatos, fóruns, grupos de estudos, pesquisas acadêmicas. A carta apresenta-se como resposta coletiva à necropolítica em vigor, cujo protagonismo é não apenas representado na figura política do Governo Federal, mas expresso pelo setor hegemônico da economia brasileiro, a partir do capital financeiro e das grandes corporações, que adoecem e matam seus trabalhadores e trabalhadoras.
Em tempos de pandemia, as manifestações da sociedade civil organizada nos dão respiro e esperança na construção das resistências e lutas, em defesa da diversidade da sociedade brasileira e da política de saúde mental, inclusiva, popular e em liberdade.