Jacira do Nascimento Serra (médica geriatra, gerontóloga, Professora do Departamento de Medicina da Universidade Federal do Maranhão)
A ampliação do tempo de vida é uma das maiores conquistas da humanidade. A transição demográfica, antes evidenciada apenas em países desenvolvidos, desde os anos 1980, passou a ser visualizada também no Brasil, em ritmo acelerado, em um curto espaço de tempo. Na atualidade, o Brasil apresenta 29,9 milhões, de pessoas com idade igual ou superior aos 60 anos, com previsão de 72,4 milhões, em 2100. O ritmo dessas mudanças é distinto em cada uma das regiões geográficas do país, refletindo as assimetrias espaciais do desenvolvimento econômico e social.
Nesse contexto, o Brasil tem mais um grande desafio a ser enfrentado: o acelerado processo de envelhecimento populacional, em um cenário de desigualdades abissais. Associado ao vertiginoso crescimento da população idosa, ocorre o aumento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) e suas sequelas, ocasionando um número expressivo de pessoas idosas com dependência e perda da autonomia, com sérias implicações individuais, familiares e sociais.
No ano de 2020, o mundo e o Brasil foram assolados pela pandemia da COVID-19, provocada pelo vírus Sars-CoV-2, condição que se caracteriza por uma alta transmissibilidade e demanda por serviços de saúde, a despertar preocupações na comunidade científica, entidades epidemiológicas, autoridades sanitárias e população em geral. Atinge indivíduos de todas as faixas etárias, mas as pessoas com 60 anos ou mais demonstram maior vulnerabilidade quanto à incidência da Covid-19, com maior risco de complicações e letalidade. Durante essa pandemia, o mundo e o Brasil adotaram medidas de isolamento e distanciamento, gerando danos financeiros e emocionais, que afetaram, diferentemente, cada grupo geracional, em especial, às pessoas idosas no âmbito familiar e social.
A orientação do isolamento social aumenta o risco para as diversas formas de violência intrafamiliar pelo somatório de questões implicadas: tensão do receio da doença e da morte iminente; risco da perda de emprego; convívio diário intenso e inesperado; ausência do restante dos familiares; lares multigeracionais; aglomeração de pessoas num mesmo espaço; falta de condições, de disponibilidade de tempo e de vontade para cuidar dos idosos; dispensa do cuidador formal; estresse do próprio cuidador.
Há de se ter presente um dado alarmante a ser pontuado no contexto brasileiro: a pandemia afeta, de forma mais cruel, os pobres, os negros e os velhos, visibilizando, em todas as suas matizes, a violência estrutural social. Um segmento expressivo de idosos não consegue seguir as recomendações das autoridades sanitárias, simplesmente porque não pode e não por não querer. Muitos são os casos incluídos nessa impossibilidade: idosos em situação de rua; idosos que habitam casas com muitas pessoas, em pequenos espaços, sem condições do pretendido distanciamento social; idosos que estão nas periferias das grandes e pequenas cidades; a população idosa rural desassistida que, muitas vezes, não têm sequer água para lavar as mãos e perspectiva alguma de cuidados. Uma outra situação dramática é a dos idosos e idosas que vivem em Instituições de Longa Permanência (ILPIs), sem estrutura física e financeira, sem equipamentos de proteção para idosos e funcionários, com um número reduzido de profissionais de saúde, que não foram capacitados para enfrentar a pandemia da Covid-19.
Ademais, é preciso considerar os muitos idosos que fazem parte do imenso contingente de trabalhadores do setor informal, sem carteira assinada, sem vínculo empregatício, sem direito aos benefícios da Previdência Social e, o que é pior, sem documento, o que os impede de receber o auxílio emergencial. E, dentre os idosos que sofrem as precarizações da informalidade, cabe destacar: os que vivem da reciclagem e, agora, com a redução do consumo, estão ainda mais vulneráveis; os que fazem trabalhos sazonais e que, neste cenário, não tem perspectivas; idosas vendedoras de produtos “de casa em casa” que, com a orientação de ficar em casa, estão impossibilitadas de fazer este trabalho. E mais, em tempos de pandemia, é preciso atentar para os idosos e idosas que precisam continuar a trabalhar para manter o seu sustento e de suas famílias: porteiros de prédios e condomínios; trabalhadoras domésticas, na condição de cozinheiras, babás e cuidadoras.
Os preconceitos que afetam às pessoas idosas, perpetuados por atitudes e discursos “velhofóbicos”, de mulheres e homens públicos, gestores, empresários proclamando, de muitas formas, a desvalorização da vida dos mais velhos, impossibilitando que tenham existência plena e a garantia de seus direitos. Este lamentável fenômeno já existia antes da pandemia, mas, com ela, tornou-se mais evidente. De fato, a pandemia da Covid-19 colocou os idosos num “cercado”, pela orientação do isolamento social e, com isso, aflorou e legitimou um desejo enraizado na sociedade de que o “lugar dos velhos é em casa”. Importante salientar que alguns idosos moram sozinhos, sem rede de apoio familiar nem social e, assim, precisam sair de casa, para suprir suas necessidades básicas de subsistência, em meio à recomendação de se manter em isolamento.
E o que dizer da enxurrada de sátiras e piadas, de vídeos, de “memes” jocosos e desrespeitosos, com imagens de idosos tentando burlar a quarentena, que se espalhou, como “fogo de palha”, pelas redes sociais? Esse tipo de “humor”, em um momento delicado como esse, reforça os estereótipos, a infantilização e a violência do olhar da sociedade para com os mais velhos. As famílias e os cuidadores das pessoas idosas incorrem na violência simbólica, por encontrarem-se perdidos em meio à avalanche de informações falsas, inespecíficas e contraditórias dos “palpiteiros e oportunistas de plantão”, ao retirar o “idoso à força de suas casas”, com a intenção de preservá-los e, mesmo, negligenciar as queixas dos idosos, com receio de levá-los ao serviço de emergência, às consultas eletivas. E, estas famílias incorrem na violência de suspender o atendimento domiciliar ao idoso, por parte equipe multidisciplinar, com receio de “trazerem o vírus” para dentro de casa.
Durante o combate ao coronavírus, detectou-se, em vários momentos, atitudes e condutas discriminatórias às pessoas idosas, simplesmente pela idade, sem levar em conta outros preditores, tais como, a funcionalidade. A necessidade de priorizar, nos serviços de saúde, o atendimento para os casos de infecção pela Covid-19, reduziu o atendimento a doentes crônicos, o que deverá aumentar a longa fila de espera por consultas, exames e cirurgias, a acarretar a exigência de mais recurso para atender a demanda reprimida, em um sistema de saúde sucateado e vilipendiado por anos de má administração.
O Brasil nunca teve uma tradição de tratar bem os seus velhos. A crise da Covid-19 não forjou as mazelas do país, apenas as está escancarando. A velhice marginalizada faz parte da nossa cultura. E, na era da pandemia pelo coronavírus, a sensação de exclusão, a apontar para as pessoas idosas, não é mera sensação. É um risco iminente de aprofundamento de diversas formas de violências.