Adriano Caetano (Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva/UFRGS)
Recebo o convite para escrever essas memórias sobre a quarentena pela minha querida amiga e madrinha da Parada pela Diversidade Sexual do Ceará, Alba Carvalho que, junto com mais duas mulheres inquietas, Ângela Pinheiro e Camila Holanda, estão à frente desse projeto. Então, era irrecusável.
Puxando pela memória, veio logo à mente que, desde o início da CONVID-19 e do isolamento social, eu tenho visto muitos textos nas redes e jornais, discutindo sobre o que significa ter intimidade com alguém e manter a nossa sanidade, em um momento em que estamos sendo instruídos a manter a distância uns dos outros. Sabemos que para muitas pessoas LGBTQI+, as suas residências e, principalmente, os seus familiares são as pessoas que mais os/as violentam, seja psicológica ou fisicamente. Então, como podemos garantir o direito dessa população quando estamos a confiná-la com os seus algozes?
Nesse contexto, temos vários relatos de mulheres que foram violentadas nas suas casas por seus companheiros durante a pandemia. E, com a população LGBTQI+ não está sendo diferente!…
No mesmo cenário da intimidade, outro ponto que quero destacar refere-se aos encontros/relações afetivo/sexuais dessa população. Vivemos numa sociedade heteronormativa. Isso quer dizer que quaisquer pessoas que esteja fora dos papéis tradicionais de gênero e orientação sexual são discriminadas e estigmatizadas. Tentando (sobre)viver, as pessoas têm escrito sobre festas sexuais digitais e como ter intimidade em tempos de distanciamento. E mais, como se masturbar quando você não tem o privilégio de uma porta fechada. Cada um de nós, especialmente as pessoas trans, pessoas não brancas e aqueles, como eu, na interseção, têm uma relação intensa e pessoal com outra pandemia: o HIV/AIDS. Cada um dos nossos traumas, ligados a isso, é singular, como o são nossas impressões digitais. A comparação desenhada entre a pandemia do HIV/AIDS e a pandemia da Covid-19 pode não ser perfeita, mas para nós, LGBTQI+, essas duas pandemias estão bastante associadas.
Tenho visto, na internet, muita gente expondo as pessoas que saem nas ruas, aqueles e aquelas que têm encontrado seus entes queridos. Ademais, como um homem gay, vejo muitos homens gays julgando uns aos outros, não somente por quererem sair pra transar, mas também por estarem nos aplicativos de procura ou “caça” sexual. Deixe-me ser bem claro: nenhuma dessas práticas é boa, do ponto de vista da saúde pessoal ou coletiva. Eu desencorajaria qualquer um a sair por uma razão não essencial e recomendaria às pessoas a encontrarem formas para explorar uma sexualidade saudável durante esse tempo: sexo por telefone, por vídeo, masturbação. A escolha aqui é do freguês.
Se nós voltarmos outra vez para a pandemia de AIDS, em busca de orientação, veremos que envergonhar as pessoas, constrangê-las, não é uma intervenção efetiva em saúde pública. Envergonhar a população gay pela sua sexualidade não funcionou. As pessoas fizeram sexo (sem proteção!) porque elas precisavam se sentir próximas de outras, em um momento no qual o nosso futuro era incerto. Insisto que não estou diminuindo a gravidade de sair para transar agora. Mas algo que eu aprendi, em terapia, é que as ações das outras pessoas estão fora do nosso controle. O que você pode controlar é como você reage a essas ações.
Estamos todos reaprendendo como se manter vivos. E aqui, quero trazer minha amiga e colega de luta, Dediane Souza, travestis, negra e nordestina. Hoje em dia e, para algumas pessoas, os espaços de socialibilidade LGBT, são vistos apenas como “guetos” de exclusão. No entanto, embora sejam resultados diretos da LGBTfobia, são também espaços de acolhimento, de construção de relações de afinidade, solidariedade e organização de redes. Não se trata, aqui, de um coro à ideia homogeneizante de comunidade, mas de entendermos que as mudanças políticas necessárias, naquele tempo (final dos anos 80 e início dos anos 90) e, hoje (final da segunda década do século XXI), para este tempo demandam olharmos de um modo diferente para o principal propulsor das lutas pelo fim do preconceito e da discriminação, a saber, às pessoas e às suas aspirações por felicidade.
Minha homenagem a outra colega de luta que faleceu por Covid-19, em Fortaleza/CE: Thina Rodrigues (travestis e presidente da Associação de Travestis e Transexuais do Ceará – ATRAC)