David Araújo (Integrante do Fórum DCA Ceará)
Trecho do Cartaz: “É prioridade sim, mas é que tem outras prioridades que são mais prioridade”.
A Constituição Brasileira de 1988 é inegavelmente o instrumento jurídico com maior poder político para o brasileiro que participa da vida política, seja no campo micro ou no campo macro. Até mesmo aqueles que se articulam contra a democracia, evocam a CF 1988 como instrumento de validação de poder, como quando bradam que existe a possibilidade de uma intervenção militar constitucional. Não há como negar que é argumento de legitimidade dizer que algo está expressamente previsto na Constituição. Mesmo que, na prática, isto não traga qualquer mudança imediata ou efetiva.
Por isto que aqueles que atuam na área da defesa e da promoção de direitos de crianças e adolescentes possuem um instrumento de legitimidade para suas demandas. O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 prevê que é dever de todos, incluindo o Estado, assegurar a crianças e adolescentes uma série de direitos, com absoluta prioridade. Mas infelizmente a legislação em si não é o bastante para garantir a efetivação dos nossos direitos. No Estado do Ceará, todo um campo de ativistas e militantes observam muito bem esta situação.
A cidade de Fortaleza segue hoje sem o seu Planos Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, e o Estado do Ceará, segue sem o respectivo Plano Estadual. O último encerrou a sua vigência há mais de dez anos atrás, e desde então permanece uma lacuna. Mas, mesmo quando existia um plano, a sua execução, aquilo que saia do papel, estava em um índice baixo.
No ano de 2017, o Prefeito Roberto Claudio criou o Comitê Municipal de Prevenção de Homicídios de Adolescentes, a partir do sucesso do Comitê Estadual, vinculado à Assembléia Legislativa e em funcionamento desde 2016. O Comitê Municipal, entretanto, mal se reuniu, pois o Prefeito fazia questão de estar presente, ensejando o cancelamento das reuniões programadas, quando surgia um compromisso, para ele, mais importante, o que ocorreu com bastante costume. No final das contas, sair na foto da reunião era prioridade em relação a garantir que o Comitê funcionasse e fizesse algo para reduzir o número de homicídios de crianças e adolescentes em Fortaleza. Tanto que foi em Junho de 2018 que ocorreu a terceira, e aparentemente última, reunião desse Comitê, fundado em Novembro de 2017.
O Programa Municipal Cada Vida Importa, aprovado em 2017 por meio de uma emenda ao Plano Pluri-Anual 2018-2021, que objetiva reduzir o número de homicídios de crianças e adolescentes em Fortaleza, teve, pelo segundoano consecutivo, uma execução orçamentária de zero por cento. De forma mais trivial, a Gestão Municipal de Fortaleza, em dois anos, gastou zero reais no Programa que deveria contribuir para a redução dos homicídios desse público, constitucionalmente prioritário. Ao passo que a avaliação do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, divulgada pelo G1, é de que, no primeiro semestre de 2020, o número de assassinatos de crianças e adolescentes no Estado do Ceará subiu em 150%. Foram 409 assassinatos.
No último dia 28 de Julho, o Ceará completou noventa dias sem o Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçado de Morte (PPCAAM), em especial por conta da falta de prioridade do Governo Federal. Neste momento, a grande ação da Ministra Damares Alves para crianças e adolescentes, no contexto da Pandemia, é a promoção de concurso de máscaras infantis. É perceptível que a prioridade absoluta para crianças e adolescentes não é garantida por nenhuma das três esferas de Governo. Observar este contexto me lembra o jargão-piada que diz assim: É prioridade sim, mas é que tem outras prioridades que são mais prioridade.
Mas existe um grupo que pensa, se organiza e luta para que o princípio constitucional da prioridade absoluta seja efetivado. Nós, que compomos o Fórum DCA Ceará, nos incluímos neste universo. O grupo das Organizações da Sociedade Civil tem tido um papel fundamental, garantindo o atendimento e o apoio a crianças, adolescentes e famílias, mesmo com a situação da Pandemia. As mesmas Organizações Não Governamentais, que são atacadas pelo Bolsonarismo quando fazem oposição aos movimentos políticos e empresariais que pregam o Estado Mínimo.
Neste momento de Pandemia, é cada vez mais nítida a importância de um Estado atuante e com capacidade de agir por conta própria. Um Estado que garanta que direitos não devem ser objeto do mercado, mas sim protegidos e garantidos por uma estrutura maior. O campo progressista luta para manter uma concepção de que o Estado possui um dever para com toda a sociedade. E esta luta requer a denúncia de uma realidade atual e o anúncio de uma realidade possível.
Neste momento triste e difícil em que nos encontramos, a solidariedade e o nosso senso de dever e justiça são pontes potenciais. Cabe a nós, com as forças que temos, anunciar que um futuro diferente é possível e que um caminho existe. Foquemos nessas pontes e nas nossas ferramentas. Assim, mais um degrau pode ser levantado e trilhado na busca por um futuro, onde a Prioridade Absoluta não seja mais um artigo que não sai do papel.
Eu acredito.