Suene Honorato (Professora do Departamento de Literatura/UFC)
Por todos os lados
na curta estrada da casa
a morte espreita
na dobra da página
sem ser sepultada.
Como sumir com o cadáver?
Ele dói, ele sangra ainda.
O governo tem a solução
: não falemos sobre o cadáver
, não pensemos sobre o cadáver
, não choremos sobre o cadáver
, não nos identifiquemos com o cadáver
nós que vivos estamos!
, não carreguemos um cemitério sobre as costas
que peso!
Vamos fingir que os mortos não morreram
para fingir que os vivos ainda vivem.
Vivos estamos ainda
–se não nos enganamos–
com abraços falhados na despedida,
a máquina do luto enguiçada.
Economia não pode consertá-la.
Já não podia:
“Eu não consigo respirar”
no cemitério-oceano Atlântico
“Eu não consigo respirar”
no Reformatório Krenak
“Eu não consigo respirar”
nos porões do DOPS
“Eu não consigo respirar”
no feminicídio
Será que agora
somos todos indígenas
diante da doença desconhecida
aportada há séculos?
Economia está furiosa!
Não quer o tempo do luto.
Vai moer os mortos
e oferecer em bandejas
no supermercado a preço de custo.
No massacre de Haximu,
crianças e mulheres assassinadas a facão pelos garimpeiros invasores não puderam ser enlutadas as cinzas de seus ossos não foram comidas com mingau de banana nas festas reahu e Davi Kopenawa Yanomami e todos os parentes ficaram com muita muita raiva de tanta morte de novo não bastava o sarampo que seu povo sequer conseguia enlutar e foram milhares de anos elaborando com o Omama o ritual para que a floresta continue de pé e os corações saibam lidar com o sofrimento e a morte e o céu não caia sobre nossas cabeças mas agora parece que caiu que vão fazer com o cadáver
Consumir o cadáver?
os Wari até um dia desses assavam o corpo do morto num moquém funerário e as pessoas que não eram parentes do morto iam comendo devagar até que o cadáver sumisse e os parentes compreendessem que o morto não era mais gente e assim começava a elaboração do luto ritual que as missões novas tribos destruíram em poucas décadas demonizando tudo o que era deles tudo em que eles acreditavam e eles que não queriam ficar sozinhos depois de mortos foram um a um se convertendo porque então tá bom lá no céu vamos voltar a fazer nossos rituais
E os rituais no país da mercadoria
que se crê civilizado
com corpos embalados por dinheiro
engravatados na grana
com rezas carpidas à moeda
nem esses
sobrevivem
à covid.
Enquanto isso, no Xingu
os tempos se confundem no cancelamento do Kuarup não vamos celebrar os mortos do ano passado e como nossas famílias sairão do luto e as mortes deste ano se acumularão de novo até quando
Será que agora
somos todos indígenas
diante da impossibilidade
deles tão conhecida
de velar os mortos?
E já perdemos
todos nós perdemos
–nós e eles e nós–
porque em tupi (antigo) se dizia “nós” com oré e îandé pra diferenciar eu e você dos outros e nós todo mundo nós todo mundo era o mundo todo diverso diferente com saberes guardados em tantas línguas a cada pronome a cada nome a cada verbo estamos precisando falar de novo îandé îandé palavra em que cabe a multiplicidade e pensar o mundo todo não somos todos indígenas mas somos todes e podemos ser juntes
tantas gentes
tantas formas
tantos ritos
Pra que não fiquemos
cada vez mais pobres
cada vez mais ódio
olhando o cadáver
que dói,
ele sangra ainda
, sequer apodrece.