Ramon Rawache (Médico)
A conectividade da tecnologia, a facilidade do acesso, o mundo virtual sempre foram ferramentas que, além das facilidades para a vida moderna, também causavam desconforto, por transportar as relações humanas para dentro de aparelhos e plataformas de aplicativos.
E eis que a pandemia da covid-19 nos retirou a possibilidade dos contatos afetuosos, os beijos, abraços e apertos de mão. As festas e encontros agora são virtuais; a aula e o trabalho são remotos. A sociabilidade, que outrora era vitima das plataformas, passou a ser salva por essas plataformas virtuais.
Os sentimentos são duramente assolados. Foram 90 dias sem um abraço, beijo ou nosso famoso cheiro cearense em minha mãe. Os abraços no irmão, tantas vezes dados em comemorações de futebol, se foram. Irmã, pai, afilhado, todos longe. Ah, e as crianças! Meu filho por duas vezes soltou aquelas pérolas, que só a genialidade inocente infantil consegue:
– Pai, não quero que você vá ao hospital. E baixando a voz para que ninguém pudesse ouvir a confidência que iria proferir, ele continuou: – tem coronavírus lá.
– Pai, não posso tirar foto de máscara. Porque não posso sorrir de máscara.
Não foi apenas a sociabilidade que sentiu. A vida sentiu! Esse invisível inimigo veio expor as feridas mais cruéis da humanidade. As desigualdades, a crônica escassez de politicas públicas de inclusão, o cruel, antigo e programático subfinanciamento no Sistema Único de Saúde (SUS) e nos programas de ciência e tecnologia, delinearam uma tragédia maior do que “se precisava ter”.
Hospitais lotados, pessoas sofrendo, o medo da iminência da sua vez de contrair a doença. O volume de trabalho sempre foi alto, mas o peso emocional, não! As mãos doem pelas feridas abertas de tantas lavagens; as costas incomodam pelas horas em pé; as pernas latejam; a face amarga as marcas dos equipamentos de proteção individual.
A sociabilidade com os demais colegas de labuta também é estranha. Não há sorriso com máscaras, meu filho tinha razão, há expressões de angústia. O Brasil foi o local onde mais morreram profissionais de saúde. Não há apertos de mãos e abraços, há acenos distantes e em meio a preocupação.
Mesmo entre nós, da Saúde, há expressões diferentes. Não há como comparar a tragédia entre os diferentes. Um dia, referi que estava com saudade dos meus pais, e uma técnica de enfermagem me respondeu:
– Doutor, o senhor está no lucro. Conseguiu se afastar deles e proteger. Eu continuo com os meus no mesmo teto.
Detalhe, era uma técnica de enfermagem do setor covid! Uma farsa! Isso sim. É uma farsa dizer que estamos no mesmo barco. O mar revolto e violento é o mesmo, mas as condições de proteção são desiguais.
As doenças não surgem de pragas divinas, não adianta jejuar. O processo saúde – doença é determinado pelas relações sociais e as desigualdades dessas relações geram impactos diferentes, adoecimentos diferentes em pessoas com as mesmas doenças. O vírus pode ser democrático no seu contágio, mas completamente desigual no impacto.
Há também outros olhos no hospital. Os olhos dos doentes expressam sentimentos diversos. A dor da distância dos seus, a angústia da desinformação, se no mundo lá fora havia algo de diferente, algum sol brilhando.
Ouço por todos os cantos as pessoas clamando por uma humanidade melhor ao fim da pandemia, que o novo normal traga um novo afeto e novos valores ao mundo. Mas isso não virá assim. O novo normal não pode vir do valho normal, dos valores individuais e baseados em códigos de barras. O novo normal deve arrebentar no horizonte pela força de muitas mãos, de muitas ações, lembrando das lágrimas e das marcas, mas, sobretudo, criando um mundo onde possamos de fato estar no mesmo barco.