Torno pública a minha posição sobre a retomada do semestre letivo da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Para expressá-la, parto do problema essencial, desenvolvo hipóteses que conduzirão a análise com o objetivo de embasar, finalmente, o meu posicionamento pessoal.
Qual a justificativa para o retorno obrigatório do semestre letivo de 2020.1 no dia 20 de julho de 2020 pela UFC?
Se centenas de estudantes, funcionários(as) e professores(as) e seus familiares estão enfermos(as) ou ainda poderão adquirir a Covid-19 e sofrer danosas consequências pós-sindrômicas;
Se o retorno por intermédio do Modelo de Ensino Remoto é completamente diferente daquele iniciado como Modelo Presencial, requisitando a aplicação de dispositivos, instrumentos e recursos de Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação (TDICs) que, por princípio, são auxiliares da metodologia empregada pelo(a) docente e não um substituto automático do papel do professor(a);
Se o uso imediato da tecnologia digital como senso comum, sem qualquer criticidade, poderá redundar no equívoco denunciado por colegas docentes da UFC, de outras universidades brasileiras e também registrada em bibliografia internacional: a perda do controle dos dados relativos aos conhecimentos produzidos;
Se durante este período da pandemia da Covid-19 já existem outras gestões administrativas sendo efetivadas ou em processo de efetivação em Instituições Federais de Ensino Superior denominadas de Período Letivo Especial ou Período Letivo Suplementar;
Se a própria Portaria 544 do Ministério da Educação que regulamenta o regime Especial de substituição das aulas presenciais prescreve para o dia 31/12/2020 a conclusão do semestre iniciado;
Se a Câmara dos Deputados na terça-feira passada (07/07) concluiu a análise da Medida Provisória 934/2020 do Governo Federal e a encaminhou para o Senado, suspendendo a obrigatoriedade das Instituições de Ensino Superior de cumprir uma quantidade mínima de dias letivos neste ano devido à pandemia da Covid-19;
Se a Reunião virtual (02/07) do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) da Universidade Federal do Ceará (UFC) que aprovou o Plano Pedagógico de Emergência (PPE) e impôs o retorno para o dia 20/07/2020 foi eivada de vícios jurídicos.
O conjunto dessas hipóteses possibilita seguir para a etapa analítica e atingir o posicionamento final.
O problema indaga sobre a justificativa. Esta é a expressão da legitimidade e da legalidade.
A primeira concerne ao princípio ou fundamento da ação (campo ético) e a segunda à coerência do conjunto de leis, normas, portarias etc. que a estabelece (campo moral).
Assim, as hipóteses circunscrevem a dimensão ética (legitimidade) porque dialogam comigo mesmo para referenciar a minha interpretação da realidade, conduzindo a minha decisão de agir e também reportam à dimensão moral (legalidade) que posso aceitar ou rejeitar.
O que é a época ou o momento individual, coletivo e cultural que se vive coetaneamente? Este questionamento é de resposta imediata, fácil quando manifesta o senso comum do presente; entretanto, requer um pensamento crítico para compreender e desvelar o que se desconhece como vetor de origem, fonte e poder de manipulação e interpretação da realidade.
Intérpretes consistentes atribuem ao atual contexto o conceito de necropolítica (confira o artigo da professora Lígia Kerr (UFC), A necropolítica e a necessidade de uma ‘frente pela vida’, publicado no jornal O Povo de 01/07/2020).
Não levar em consideração que a nossa forma de vida mudou e fingir que a nossa realidade compartilhada agora é a mesma em que vivíamos antes do distanciamento/isolamento social forçado por razões de segurança sanitária é insensatez e indicativo de visão obtusa.
A relação entre a Tecnologia Digital e a Educação que se coloca no Modelo de implantação do Ensino Remoto (ER) exige uma complexa reestruturação da Estratégia de Ensino e Aprendizagem mediada por conhecimentos específicos oriundos de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVAs) e requer a inserção efetiva do segmento estudantil no processo de redesenhar uma nova prática didática.
A adesão ao ER açodada, massiva, apenas com o objetivo de cumprir uma carga horária e finalizar de qualquer modo o semestre letivo é deletéria e desrespeitosa para com a Comunidade Universitária, pois retornar apressadamente inviabiliza a qualidade das tarefas pedagógicas e estimula a evasão discente.
Isso é institucionalizar a mediocridade na educação, fazê-la serva do biopoder e torná-la nua (confira o artigo da professora Juliana Diniz (UFC), A educação nua, publicado no jornal O Povo de 04/07/2020).
Um Modelo de Ensino Remoto coerente com os autênticos valores da Educação Pública exige um Projeto Pedagógico estruturado a partir do conceito de Sequência Didática que concerne aos princípios da Aprendizagem Criativa inserida nas TDICs, estimulando a produção do saber do(a) estudante não alheio à sua/nossa realidade social.
Sobre o Período Letivo Especial é previsto um semestre com aproximadamente 12 semanas de aulas por Ensino Remoto; porém, somente iniciado após a efetiva inclusão digital e a adequada capacitação docente. Aqui há respeito e compromisso com a inclusão digital e não a sorrateira promessa de distribuir milhares de dispositivos de acessibilidade gratuita à internet para os(as) estudantes.
Sobre a Portaria 544 do Ministério da Educação e a Medida Provisória 934/2020: ambas não determinam datas específicas para o retorno. Isto implica a perspectiva de diálogo e de negociação do gestor institucional com a Comunidade Universitária respeitando a característica plural dos diversos saberes que conformam os distintos Cursos da UFC cada um com singularidade própria.
Sobre a Reunião virtual do CEPE, houve violação de artigos da Constituição Federal (Art. 206), da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Art. 56) e solapamento do próprio Estatuto da UFC que normatiza a composição do CEPE, pois a Representação Estudantil estava ausente porque não foi comunicada previamente. O argumento do condutor da reunião, professor José Cândido Albuquerque, para não convocar a Representação Estudantil é juridicamente pífio.
Quero registrar minha indignação contra a postura do referido professor ao desrespeitar a representação da Faculdade de Educação (FACED) naquela ocasião. Minha solidariedade às professoras Adriana Braga, Heulalia Rafante e Maria do Céu Lima.
Concluindo, não se justifica, não é sensato ou prudente o retorno obrigatório do semestre letivo de 2020.1 no dia 20 de julho de 2020 pela UFC. Tal retorno é oriundo de ato antidemocrático, discricionário abusivo, arbitrário.
Para mim, trata-se de ato ilegítimo e ilegal.
Caros(as) professores(as) da UFC, por que não estamos lecionando? Esta paralisação é semelhante a tantas outras que já foram realizadas?
Não, agora se trata de uma pandemia de proporção mundial acarretando, inclusive, em uma perspectiva de mudança histórica em cujo cerne se encontra a responsabilidade pela vida.
Ao retornarmos, em que o nosso ensino contribuirá para se tornar uma referência para a formação humana e profissional dos(as) discentes? O que o nosso conhecimento produzirá em benefício da população, da transformação da realidade educacional, sanitária, sócio-econômica regional e do país? Qual o legado que se deixará para as futuras gerações? Será aquele de autêntico compromisso com a Educação Pública ou seremos coniventes com os interesses escusos que tentam elidi-la?
Acredito que a maioria dos(as) docentes da UFC gostaria de estar vivenciando o cotidiano do seu Departamento, o aconchego da sua sala de aula, pois essa é a nossa forma de vida desejada.
Seguramente, conheço muitos e muitas da UFC que têm na docência a realização de um sonho, o significado e o sentido da própria vida e não uma simples conveniência coadjuvante para atingir outro fim.
Apesar de toda ignomínia da impostura, ser docente da UFC é fonte de alegria e, com ela, resistiremos.
Prof. Francisco Ursino da Silva Neto
(Departamento de Saúde Comunitária/Faculdade de Medicina/UFC)
(*) Texto publicado originalmente no site do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da UFC.