Lara Gonçalves (Estudante de Psicologia UFC)
Ângela Pinheiro (Professora da UFC) Ambas Integrantes do (NUCEPEC)
Os tempos da Pandemia do novo Coronavírus nos exigem cuidados redobrados, quanto a higienização, alimentação, permanência em casa, prevenção de contágios. Tudo isso a requerer de nós manutenção prolongada de distanciamento social, para os que podem permanecer em casa. E cuidados rigorosos para os que precisam sair de casa, por terem trabalhos relacionados a atividades essenciais, e também à voracidade capitalista, a colocar em risco a vida de tantas e tantos trabalhadores, pela disposição ilimitada de alcançar lucros vultosos para poucos. Essas são algumas dimensões da vida social, durante a maior crise de saúde pública já vivenciada no Brasil, em meio a sucessivas ações do Governo Federal, a desrespeitar orientações apontadas por autoridades sanitárias, pela OMS e OPAS, e especialistas da ciência e da pesquisa. Desta forma, estamos a vivenciar no País uma disputa ferrenha de orientações e atitudes: de um lado, o desgoverno federal e aliados antidemocratas e desrespeitosos, a colocar como “orientadores” a ignorância, o desprezo pela vida humana e o lucro acima de tudo; de outro, forças democráticas e de, no mínimo, bom senso, que têm como valor maior o respeito à vida digna acima de tudo. Com relação a direitos de crianças e adolescentes, há mais um agravante: ações e afirmações do ocupante da Presidência da República, como sua declaração de que rasgaria o E.C.A. e jogaria na latrina.
Há três décadas, vivíamos tempos de redemocratização, profundamente favoráveis à logica de direitos, concretizada na Constituição Federal de 1988 (CF 1988), fruto da Assembléia Nacional Constituinte 1987-88. Em 1989, a Assembléia Geral da ONU aprovava, por maioria quase absoluta, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CNUDC). No ano seguinte, 1990, o Brasil promulgava a Lei Federal Complementar nº8069/90, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (E.C.A.), considerado profundamente inovador, tanto na história legislativa do Brasil, como para muitas outras Nações.
Passamos a dispor, assim, de um arcabouço pioneiro e fantástico para a garantia, promoção e defesa de direitos de crianças e adolescentes: pela primeira vez na nossa legislação, foram considerados sujeitos de direitos! A partir de então, se iniciava a transição entre a até então vigente legislação predominantemente assistencialista e punitiva, para os denominados “menores”, para um longo processo de implantação das inovações previstas na CF 1988, na CNUDC e no ECA.
Há inúmeras abordagens possíveis sobre o ECA. Optamos por destacar algumas peculiaridades de sua construção e de seu conteúdo. Todo o texto do ECA foi elaborado fora do Congresso Nacional, com participação de integrantes de ONGs e OGs, movimentos sociais e núcleos universitários, que compunham o trato público voltado para crianças e adolescentes. Uma comissão estava encarregada de receber as sugestões – advindas de encontros locais e nacionais – e construir a redação do ECA, respeitando os princípios contidos na CF 1988 e CNUDC, da qual o Brasil é signatário. No Ceará, três instituições buscaram contribuir com o conteúdo do ECA, a partir da promoção de encontros, com participação de adolescentes, advindos de diversificadas inserções sociais: NUCEPEC/UFC, Pastoral do Menor de Fortaleza e Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Sempre avaliamos que a participação poderia ter sido maior, mas assumiu a amplitude possível à época. O trâmite do texto do ECA foi meramente formal no Congresso: análise por Comissões e votação em Plenário, a partir de acordo das lideranças partidárias sobre o texto, exatamente como havia sido entregue! Essa peculiaridade do ECA traduzia a presença firme do movimento infância na cena pública brasileira.
Passemos a inovações contidas no ECA. Além do modo inovador de construção, há uma grande mudança de Doutrina, se comparado a documentos anteriores que estabeleciam o trato legislativo sobre crianças e adolescentes. Saíamos dos Códigos de Menores, regidos pela Doutrina da Situação Irregular, direcionados ao “menor” em casos de “carência, abandono ou delinquência”, por meio de tratamento assistencialista e punitivo, que os distanciava de serem crianças e adolescentes. Adotávamos a Doutrina da Proteção Integral, que põe fim à separação entre menor e criança e adolescente, e estabelece que todos, em situação peculiar de desenvolvimento, são sujeitos de todos os direitos. Da Doutrina, apontamos o princípio da Prioridade Absoluta: coloca como dever do Estado assegurar, por meio de políticas e orçamentos públicos, a construção de tratos públicos que respeitem seus direitos; e a proteção contra qualquer forma de violação desses.
Para isso, é criado o Conselho Tutelar, uma das principais instituições estatais responsáveis por essa garantia e pelo trato dos casos de violação, contando com conselheiros escolhidos por eleição, assegurando a participação da sociedade civil de pessoas para o cargo, que devem estar engajadas com o trabalho de proteção de crianças e adolescentes. Ademais, com a participação mais direta da sociedade civil (ONGs com atuação nesse campo), temos os Conselhos de Direitos de Crianças e Adolescentes – municipais, estaduais e nacional, com função de deliberar e monitorar as ações de OGs e ONGs relacionadas a infâncias e adolescências. Diferenciação desses Conselhos: são deliberativos e paritários (igual número de representações da sociedade civil e do Poder Público). As inovações vão além. Destacamos: previsão de defesa técnica para adolescentes em conflito com a lei; direitos iguais para filhos – tidos ou não no casamento e adotivos. Sugerimos aos interessados que se aprofundem.
Considerando as grandes mudanças trazidas pelo ECA, percebemo-lo como imprescindível dispositivo na garantia e defesa de direitos de crianças e adolescentes. A construção desse documento foi potencializada pela luta do Movimento Infância, e fez reconhecer que todas as crianças e todos os adolescentes, com suas diferenças e singularidades, devem ter acesso a todos os direitos.
Críticas relacionadas ao ECA? Certamente as temos. Apontamos duas: persistentes considerações negativas ao ECA, no mais das vezes sem a devida análise, decorrentes, quase sempre, da imensa dificuldade, no nosso tecido social, de reconhecer todos os direitos para todas as crianças e adolescentes. Somos um país marcado por abissais desigualdades sociais, processos de exclusão e de inclusão perversa, por privilégios e ausência do Estado.
Segunda crítica nossa: previsão, no ECA, de limitadas possibilidades de participação de crianças e adolescentes – em instâncias relacionadas a eles (CT e CDCA) e outras; e de privação de liberdade para adolescentes em conflito com a lei, que em nada se mostra adequado para pessoas em condição especial de desenvolvimento.
Por fim, reconhecendo avanços e grandes passos ainda a serem dados no campo dos direitos de crianças e adolescentes, a discussão realizada neste texto busca que cada vez mais pessoas possam responder sim à pergunta que o intitula: “Você conhece o Estatuto da Criança e do Adolescente?”. Em comemoração aos 30 anos do ECA, em meio a uma pandemia que nos exige, além de diversos cuidados, novas e necessárias formas de luta por direitos, nós, integrantes do NUCEPEC, propomos que celebremos essa data por meio da imprescindível divulgação e discussão dessa Lei. Assim, na página do Instagram @nucepec, temos construído conteúdos que possibilitem pensar, promover e colaborar com o conhecimento sobre o ECA, dentro e fora da Universidade. Convidamos a tod@s que se juntem a nós em reflexões e práticas, para que a implantação do ECA seja ampla e consistente, e que tenhamos razões para celebrar esta data!