Michely Peres de Andrade (Professora da Universidade Estadual do Ceará – UECE)
Maria Alda de Sousa Alves (Professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira – UNILAB-CE)
Isolamento e distanciamentos sociais. Cansaço, medo, irritabilidade, paciência e resiliência. São práticas e sentimentos que se tornaram palavras de ordem em nossas vidas cotidianas, modificando-as completamente. Como mensurar tais práticas e sentimentos? Como compreender a subjetividade de mulheres, mães e trabalhadoras em tempos difíceis de crise pandêmica?
Nos últimos anos, observa-se que os homens têm se esforçado mais em direção a uma paternidade ativa, compartilhando com suas companheiras as responsabilidades do cuidado com as crianças e com o trabalho doméstico. Por outro lado, essa mudança comportamental parece ser muito circunscrita a uma fração da classe média e, mesmo entre esses homens, trata-se de uma demanda cultural ainda não muito próspera ou bem resolvida nas suas emoções e masculinidade. Com o passar do tempo, falta a esses pais a iniciativa para as práticas de cuidado e as mulheres se veem na incumbência exaustiva do planejamento sem fim.
Em outras palavras, os homens fazem, mas não por iniciativa própria, fazem porque as suas parceiras precisaram planejar cada detalhe, roteirizando diariamente a divisão dos cuidados com a casa e com os filhos. Em cada situação inusitada do cotidiano, lá está a mulher a pensar em soluções, alternativas ou novas formas de cuidado.
A naturalização do trabalho doméstico como uma construção cultural inerente ao cotidiano das mulheres, somada às imposições sociais experimentadas no tocante aos cuidados com os mais velhos e as crianças, ou seja, com a manutenção das relações familiares, tendem a representar um tipo de dominação que se acentua não somente no plano das desigualdades econômicas, decorrentes da construção de papeis de gênero, mas também nas diferentes formas de produção de violências simbólicas.
Somando-se às desigualdades vividas no âmbito privado, empresas, instituições de ensino e órgãos públicos continuam despreparados para receber as mulheres e suas crianças no ambiente de trabalho ou estudo. Estamos falando de mulheres trabalhadoras e assalariadas, que, além dos cuidados com a casa e com os filhos, precisam responder de modo “eficiente” às exigências do mercado de trabalho e da sua profissão.
Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), realizado em 2018, apontou que metade das mães que trabalham são demitidas até dois anos depois que acaba a licença maternidade, uma vez que “a mentalidade que ainda vigora é a de que o cuidado com os filhos é de exclusiva responsabilidade das mulheres”. Outra pesquisa mais recente, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e divulgada no final de abril de 2020, revela que a chegada de um filho pode impactar a vida das mulheres brasileiras em quase oito vezes mais do que a dos homens.
Como mulheres acadêmicas, também sentimos na pele os impactos da desigualdade de gênero. Se fizermos a comparação da produção de artigos e trabalhos científicos de homens e mulheres que possuem filhos da mesma faixa etária, a diferença é brutal. Já parou para perguntar a algum colega de profissão quem fica com os filhos enquanto ele escreve seus artigos e realiza suas pesquisas? Quem cuida da limpeza da casa? Estariam eles remunerando de forma razoável as trabalhadoras domésticas por tais serviços?
Desde os anos 1970, feministas negras, como Angela Davis e Lélia Gonzalez, chamam atenção para a forma como patriarcado, capitalismo e racismo se entrelaçam e se reforçam mutuamente, uma vez que o trabalho doméstico feminino não remunerado ou mal remunerado está na base desse modelo econômico, como uma espécie de “benfeitor” invisível. A situação é ainda mais grave nas sociedades com forte legado colonial e escravocrata.
Em tempos de Covid-19, torna-se ainda mais evidente a tradicionalíssima divisão do trabalho doméstico, que sobrecarrega as mulheres na sua jornada tripla diária. Diante da uberização das relações de trabalho, como tem sido vivido o isolamento social por mães trabalhadoras nas periferias e favelas? Boaventura de Sousa Santos, em produção de 2020, chama atenção para os grupos que estão ao Sul da quarentena.
Os corpos racializados e generificados são aqueles que mais sentem os impactos da cruel pedagogia do coronavírus, sendo as mulheres um grupo social que vivencia, de modo intenso, o atual cenário global de pandemia. São elas consideradas as “cuidadoras do mundo”, as trabalhadoras informais e autônomas, as empregadas domésticas, aquelas que convivem com a violência dentro de casa, as enfermeiras que estão na linha de frente, as assistentes sociais. Podemos citar ainda as mulheres transgêneras, as idosas, as mulheres que portam deficiências ou mães de pessoas com deficiência e tantas outras, face à lógica reinante do capacitismo, já vivem uma espécie de “quarentena original”.
O que dizer da medida tomada pela prefeitura de Belém, em 6 de maio, que incluiu a atividade de empregadas domésticas como essencial durante a pandemia? Decisão que demonstra o legado de quatro séculos de escravidão. O que dizer ainda do caso do menino Miguel, de 5 anos, que teve a vida perdida, em 2 de junho, ao cair do nono andar de um prédio, por negligência da patroa de Mirtes, sua mãe e empregada doméstica, que trabalhava para a família do prefeito de Tamandaré, em Recife? Quais mães têm direito à proteção e à quarentena? Quem cuida dos filhos das trabalhadoras?
No Brasil do século XXI, as condições materiais de existência da classe trabalhadora parecem estar longe de encontrarem alguma dignidade. Na atual crise pandêmica, tais condições tornam-se ainda mais agudas, estando os pobres condenados a vivenciarem os efeitos mais perversos, decorrentes de contaminações pelo coronavírus.
Lélia Gonzalez, em artigo intitulado “Por um feminismo afro-latino-americano”, de 1988, afirmou que era indispensável à luta feminista a inclusão das mulheres que se encontram na base e nas margens do sistema capitalista. São as mulheres indígenas, negras, quilombolas e periféricas, historicamente desumanizadas, que nos ajudarão a construir novas estratégias de luta contra as desigualdades e novos sentidos para o bem viver.
Somos mães de duas meninas. Amamos nossas filhas e a potência da maternidade mobiliza as nossas ações e expande os nossos horizontes. Elas nos revolucionam internamente! Nos abre ao novo! Nossas filhas nos trazem a alegria e a esperança de que dias melhores virão. Porém, faz-se necessário denunciar como as desigualdades de gênero acabam alimentando e reforçando as desigualdades de classe e raça de forma ainda mais exacerbada em tempos de pandemia. O machismo, que tantas de nós acreditamos estar enfraquecido, segue o seu curso de forma ainda mais astuta. É preciso manter-se atenta e forte! É preciso saber lutar como uma mãe!