A soberania e a proteção de dados fragilizam-se com a recomendação da utilização das plataformas privadas como Google Education e Similares na promoção do ensino virtual que vem se impondo nas universidades públicas brasileiras. A “tendência” vai na contramão dos esforços que vêm sendo realizados desde o início dos anos 2000 para o desenvolvimento de softwares livres. E mais: a migração para serviços similares esvazia quase três décadas de investimento público nesse tipo de plataforma de serviço.
A medida intensifica as desigualdades sociais na educação e corrobora com o chamado “capitalismo de plataforma”, quando são utilizadas plataformas privadas como Google na promoção do ensino virtual. As universidades federais historicamente tiveram um papel extremamente relevante no uso de tecnologias e internet, o que se evidencia na Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), por exemplo. E é dever da universidade pública valorizá-la e ampliá-la, cobrando maiores investimentos públicos em pessoal e equipamentos.
Em 1991, a RNP ajudou a trazer a internet para o Brasil e continua a promover o uso inovador de Tecnologias da Informação e Comunicação, impulsionando ciência e educação para todos. Para a Profª. Helena Martins, do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da Universidade Federal do Ceará (UFC), preterir instituições nacionais como a RNP a plataformas privadas vai além de oferecer mais dinheiro aos grupos mais importantes da economia mundial, que são inclusive objeto de denúncia de uso indevido de dados. Ela aponta que essa postura significa também abrir mão de cumprir papel histórico de desenvolvimento tecnológico nacional.
Ainda de acordo com Helena Martins, deveria ser feito um acordo de cooperação com base na partilha do conhecimento, e na possibilidade de desenvolvimento tecnológico conjunto. “E não essa lógica de apenas pagar para um serviço que não será desenvolvido e adaptado a condições particulares”, conclui a professora, que também coordena o Laboratório de Pesquisa em Políticas, Tecnologia e Economia da Comunicação na UFC.
ANDES-SN debate o tema
“Por que é um problema a universidade pública aderir ao Google Education e Similares?”. É uma pergunta que vem sendo respondida pelo ANDES – Sindicato Nacional, em campanha nas redes sociais. Entre os diversos argumentos apresentados pelo sindicato, existem ferramentas do serviço público federal e de plataformas Open Source que já realizam os serviços oferecidos pelas empresas privadas, como SIGAA e a plataforma da RNP. Diante da imposição do Ministério da Educação (MEC) e de gestões e reitorias em implementar, a qualquer custo, arremedos de ensino a distância nas universidades e institutos federais, o ANDES-SN vem promovendo esse debate.
No dia 23 de junho, por exemplo, o ANDES-SN deu voz ao Prof. Márcio Moretto, da Universidade de São Paulo (USP), que afirmou as universidades perdem a oportunidade de desenvolver autonomia perante as grandes corporações e um corpo técnico capaz de desenvolver esses recursos. “Além disso, as instituições abrem mão da soberania dos dados”, disse ele, no debate, que contou com a participação também do Prof. Nelson Pretto, da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “É uma grande oportunidade de negócio para as grandes empresas”, alertou Pretto, apontando como “retrocesso” em relação aos esforços realizados pelo movimento de software livre. “E que buscou não só soluções tecnológicas desenvolvidas de forma coletiva e cooperativa mas também ter os servidores alocados no Brasil e não em outros países, com outros marcos legais”. A discussão pode ser acompanhada AQUI.
Mecanismos pouco transparentes e desconhecidos da sociedade
Ao fazer uso dessas plataformas comerciais da internet, a comunidade acadêmica está sujeita à vigilância constante por meio de mecanismos pouco transparentes e, consequentemente, desconhecidos pela sociedade. É o que sinaliza o Prof. Eduardo Junqueira, do Instituto Universidade Virtual e do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da UFC, em seu artigo “Vigilância em tempos de educação à distância”, publicado em março último no portal Outras Palavras. Segundo ele, toda essa produção intelectual circula e pode ser armazenada nos computadores dessas empresas privadas.
Na mesma linha, o Prof. José Maria Monteiro, do Departamento de Computação da UFC, avalia como “uma grande problemática” a utilização das plataformas privadas porque não são revelados detalhes de como os dados dos usuários são efetivamente utilizados. “Não se sabe onde fisicamente estes dados estão armazenados, o que levanta discussões acerca o fato de tais empresas estarem ou não sujeitas à legislação brasileira”, afirma José Maria.
Além disso, acrescenta o professor, a qualquer momento essas empresas podem passar a cobrar pela utilização dessas plataformas. Segundo ele, não há garantias quanto ao período dessa gratuidade e não se sabe qual o custo de, em um eventual cancelamento desta política de gratuidade, haver a necessidade de migrar todos os cursos e materiais didáticos desenvolvidos para uma outra plataforma.
Segundo Eduardo Junqueira, os dados de navegação e as diversas ações realizadas nessas plataformas privadas são as fontes dos altos lucros dessas empresas. Quando a universidade pública faz a contratação desses serviços, embora aparentemente gratuito, todos os dados do usuário se tornam a forma de pagamento. “É necessário fazer a reflexão do que significa ser uma universidade pública, e quando essa universidade pública adota serviços de uma empresa privada, isso precisa ser feito com uma série de
critérios mesmo no contexto emergencial de pandemia”, enfatiza Eduardo.
Os dados são coletados, analisados e vendidos a diversos segmentos do mercado e instituições variadas, que buscam informações privilegiadas para direcionar suas ações de marketing digital, buscando oferecer produtos baseados no comportamento de futuro clientes. A maior parte dos lucros obtidos se baseia nesse modelo de negócios, chamado Big Data. Isso significa dizer que quando essas alternativas privadas são requisitadas para o uso educacional de uma universidade, o detentor dos direitos deixa de ter controle sobre os seus conhecimentos. Todas as propriedades intelectuais que serão discutidas nas aulas, como pesquisas e estudos, passarão a ser visualizadas e armazenadas por essas empresas, já que essas informações estarão em seus servidores.
No caso da UFC, no Plano de Formação para Apoio e Acompanhamento das Atividades Educativas em Tempos de Pandemia de Covid-19, fica evidente que serão utilizadas plataformas privadas para o acesso, o acompanhamento e a promoção das atividades remotas. Para o professor Eduardo Junqueira, a universidade deve, no mínimo, sinalizar a dimensão do que significa aderir a essas plataformas privadas. Deveria, segundo ele, utilizar apenas serviços públicos desenvolvidos pela universidade e pelo estado brasileiro. O professor exemplifica com o ambiente SOLAR, desenvolvido na UFC, que possui essa funcionalidade. A RNP, citada no início da matéria e que inclui a UFC, também possui conferência web e é pública. Ou até mesmo serviços de software livre como o Jitsi Meet que não operam nessa lógica comercial, observa Junqueira.
Lei de proteção de dados ainda é fraca no Brasil
A Lei nº 13.709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPDP), é uma proposta para regulamentar o acesso às informações pessoais de todos os brasileiros. Essa lei iniciou a tramitação em 2012 e a data para que entre em vigor ainda é incerta. Após muitas alterações e vetos presidenciais, estava prevista, inicialmente, para começar a valer em agosto de 2020. Em decorrência da Covid-19, a Medida Provisória 959/2020 define, dentre outros pontos, que a LGPDP (com exceção das punições) entrará em vigor em 3 de maio de 2021. Contudo, o prazo apenas será efetivado se a MP seja aprovada no Congresso Nacional. Caso ela não seja convertida em lei, ou caduque, a entrada em vigor da LGPDP volta a ser em agosto de 2020.
A lei, no entanto, ainda é fraca, pois, apesar de garantir o direito do cidadão sobre seus dados, o interessado deve fazer a solicitação explícita para que eles não sejam utilizados pelas empresas, diferente da lei da União Europeia, pela qual a empresa é obrigada a solicitar previamente a autorização de cada usuário para utilizar os dados. “Resumindo, no Brasil, se você não solicitar explicitamente, seus dados poderão ser usados pela empresa prestadora do serviço sem nenhuma restrição” – é o que alerta o Prof. Marcial Porto, da Pós-graduação em Ciência da Computação da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
No texto “Ferramentas computacionais da educação e soberania”, Marcial aponta que, no lugar de ferramentas proprietárias, como as do Google, poderiam ser utilizadas plataformas educacionais, ou Learning Management System (LMS) de código aberto (Open-source), como Moodle, OpenEdx ou Canvas, nas quais esse problema não ocorreria. “Todas essas ferramentas de código aberto são gratuitas e atendem aos requisitos de alunos e professores”, diz. Como o código é aberto e pode ser auditado, fica garantido que não ocorre vazamento de informações.
(*) Sugestões de leitura sobre o tema:
. Site Educação Vigiada, iniciativa de acadêmicos e membros de organizações sociais que visa alertar sobre o avanço da lógica de monetização de grandes empresas intituladas pelo acrônico GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) sobre a educação pública brasileira. Disponibiliza dados da pesquisa intitulada “Capitalismo de Vigilância e a Educação Pública do Brasil” com a intenção de incentivar um debate na sociedade em relação aos impactos sociais da vigilância.
. Artigo “Ferramentas computacionais da educação e soberania”, do Prof. Marcial Porto Fernández: CLIQUE AQUI.