Pedro Henrique Augusto Medeiros (Professor do IFCE, Idealizador do Projeto Água na Caatinga)
Pedro Antonio Molinas (Consultor em Recursos Hídricos)
José Carlos de Araújo (Professor da UFC)
No último dia 10 de maio, lemos com certa surpresa o artigo intitulado “60 mil barragens trazem impacto para açudes estratégicos do Ceará”, publicado no “Diário do Nordeste”. Nossa surpresa não se deve à afirmação de tal impacto, mas ao que parece uma atribuição injusta de ‘culpabilidade’ dessas estruturas para a crise hídrica que assola, não apenas o semiárido brasileiro, sendo um problema em escala global. Pesquisamos o sistema de barragens – das pequenas às muito grandes – há mais de vinte anos. Nossa surpresa em relação ao referido artigo não se deve, portanto, ao argumento de que pequenos açudes impactam o aporte hídrico aos açudes estratégicos, mas porque questões essenciais não são abordadas: qual é a magnitude do impacto dos pequenos açudes no sistema hídrico? Há consequências positivas dessa rede de açudes para a sociedade cearense?
Os levantamentos sobre quantidade de pequenos açudes baseiam-se em imagens de satélite. Portanto, a informação obtida se refere à quantidade e às áreas inundadas por essas estruturas. Daí a dificuldade de se avaliar o tal impacto em termos volumétricos. Em 2019, desenvolvemos um método para estimar os volumes de pequenos açudes, a partir dessas informações das áreas inundadas (artigo publicado na revista científica da Associação Internacional de Ciências Hidrológicas), e utilizamos esse método para quantificar tal impacto. Utilizamos uma base de dados globais, publicada na prestigiada revista científica Nature, produzida a partir de 3,5 milhões de imagens do satélite Landsat nas últimas 3,5 décadas, para calcular os volumes dos reservatórios no Ceará. Esse estudo identificou aproximadamente 23.000 açudes, dos quais 94% (21.500 açudes) apresentavam capacidade de menos de 1 milhão de m³. Assim, apesar da grande quantidade de pequenos açudes detectados, estes são capazes de acumular apenas 5% de toda a capacidade de reserva de água no Ceará: 1 bilhão de m³. A título de comparação, sozinho, o Castanhão é capaz de acumular 6,7 bilhões de m³ ou mais de 30% da acumulação total do Estado.
Os pequenos açudes retêm parte da água que chegaria aos estratégicos, isso é fato. Mas a rede de açudes também promove impactos positivos sobre o sistema hídrico: i) retêm uma grande parcela dos sedimentos que são carreados pelo escoamento. Caso não existissem, os grandes açudes receberiam uma carga de sedimentos de aproximadamente o dobro da atual, resultando num assoreamento e perda de disponibilidade hídrica mais acelerada; ii) distribuem equitativamente a água em todo o território cearense, diminuindo os esforços para levar água para comunidades remotas e reduzindo os custos com energia para esse transporte de água; iii) são fundamentais para o desenvolvimento das economias locais e a subsistência das pessoas no meio rural.
Nesse momento de pandemia, a vida no campo nos garante o alimento na cidade. As atividades campesinas garantem o emprego a milhões de jovens que não teriam perspectivas de uma vida digna nas periferias das grandes cidades. A água – principalmente no semiárido – é elemento fundamental para a viabilização da vida e da produção no campo. Portanto, depauperar o campesinato de suas fontes hídricas é destiná-los aos grandes centros urbanos, que já não suprem as necessidades de sua população, principalmente em situações extremas, como a pandemia da Covid-19.
Uma questão que deixamos para reflexão do(a) leitor(a) é a questão ética. Por que não seria válida a retenção de água em pequenos açudes para os camponeses, ainda que fosse em detrimento do acúmulo de água em grandes açudes destinados ao abastecimento de grandes centros urbanos? Esta é uma reflexão que a sociedade cearense precisa fazer: armazenamos água para que e para quem? Aos que não reconhecem a importância dos pequenos açudes para a população rural do semiárido brasileiro, fazemos um convite para que saiam das grandes cidades para conhecer a realidade do sertão, com seus contrastes, sua beleza e, principalmente, sua gente.