Margarida Maria Marques (Integrante Instituto Negra do Ceará – INegra)
Quando criança, já um pouco maiorzinha, eu às vezes acompanhava a Tia Maria na entrega das roupas nas casas dos brancos (era assim que minhas tias por parte de mãe chamavam as famílias para as quais trabalhavam). Tia Maria lavava e passava para os brancos. Quando terminava, fazia um envelope bem feito e gigante com as roupas passadas e algum sobrinho ajudava na entrega. Tia Maria já não era tão jovem. Eu achava aqueles envelopes fechados com broches de bebê um mistério, uma arte de tão bem feitos. Tomávamos o ônibus no Jardim Iracema e íamos às entregas.
Nunca entramos nas casas dos brancos pela porta da frente. Das vezes que acompanhei a Tia Maria na entrega das roupas lavadas/passadas, só conheci a cozinha das casas dos brancos. Às vezes, espichava o pescoço e via um pedaço da sala, uma mesa de jantar… um quadro grande na parede da sala, o corredor. Da cozinha, eu ficava adivinhando a casa. Eu nunca vou saber onde eram essas casas. Isso ficou na parte surreal da memória. Eu só acompanhava minha Tia Maria. Não era pra saber nada, não. Mas eu tenho uma lembrança que nunca esqueci. Foi numa das casas, que na parte surreal da minha memória, ficava ali perto das caixas d’água, que hoje reconheço quase Centro, quase Benfica. Eu estava na cozinha, comendo uma banana que a empregada tinha me dado. As empregadas sempre davam algo para comer. Daí, do nada, uma menina, de idade como a minha, apareceu na cozinha. Parou na porta. E ficou me olhando. Eu também fiquei olhando pra ela. Ela não se aproximou de mim. Ela olhava admirada pra mim. Eu olhava curiosa pra ela. Eu nunca tinha visto uma criança tão arrumada naquela hora do dia. Vestidinho com leve estampa azul, talvez passado pela Tia Maria. Não nos falamos e depois de um tempo ela deu meia volta e desapareceu na direção da sala.
Levaria muitos anos para eu compreender toda aquela cena, as trouxas de roupa lavadas e passadas pela Tia Maria, porque nunca entramos pela porta da frente e o silêncio e o espanto entre a menina e eu. Levaria muito tempo para compreender e chamar pelo nome, racismo. (Lembro disso tudo enquanto tento não reter na memória as notícias da morte do pequeno Miguel, cujo choro/medo da ausência da mãe incomodou sinhá Sari e por isso foi morto).
P.S. Não conheço Mirtes, mãe do Miguel, mas seguro na sua mão.
(Texto escrito na madrugada de 05.06.2020)