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A grande expectativa de retorno das atividades de diversos setores tem permeado o debate nacional e levado a uma crescente pressão para que as Universidades Públicas desenvolvam atividades remotas em substituição às aulas presenciais. Na UFC, uma característica peculiar desperta atenção: um aligeiramento que tem comprometido tanto a busca por soluções quanto o próprio planejamento. Fazemos aqui uma análise crítica da PPE da PROGRAD/UFC, no contexto da pandemia de Covid-19, visando preservar as funções formativa e redistributiva da universidade pública como instituição pertencente a toda a sociedade. Isso significa pensar métodos e ações atentos à qualidade do ensino e ao processo de democratização da universidade pública.
A comutação para atividades remotas, como foi estabelecida pelo MEC e ratificada pelo Conselho Nacional de Educação, não foi acompanhada de nenhuma política pública que contemplasse as necessidades educacionais e tecnológicas nesse novo modo. Na prática, o governo Bolsonaro não se comporta como governo – liderando, coordenando, viabilizando e apoiando ações – mas como um chefe que apenas quer “mandar”, sem se comprometer e sem dar as condições de realização do trabalho. Tem sido assim até na saúde, epicentro da crise atual; e na educação, o descompromisso é completo.
Tal conduta não reflete apenas a incompetência e a irresponsabilidade flagrantes do governo federal, mas segue os instintos mais baixos e agressivos transformados em programa econômico, que é o neoliberalismo. Nessa ausência do Estado, trata-se de deixar para trás os mais frágeis e os mais pobres, que fatalmente serão prejudicados ou mesmo expulsos de um ambiente universitário que demande a posse de determinados equipamentos e serviços. Trata-se ainda de onerar e mesmo inviabilizar as condições de trabalho nas universidades públicas, ao cortar orçamento e proibir a reposição dos quadros universitários. Hoje, estão proibidas as contratações de professores e funcionários, mesmo aqueles para vagas já existentes e já aprovados em concurso, com prejuízo iminente inclusive à oferta de componentes curriculares obrigatórios.
A conduta da reitoria da UFC, alinhada ao governo Bolsonaro, segue a mesma lógica. Nada tem a oferecer, a não ser ordens, como atesta inclusive a preferência por atos normativos monocráticos. A Proposta Pedagógica Emergencial apresentada pela PROGRAD no dia 3 de junho é mais um retrato do voluntarismo e do improviso a que estamos submetidos na UFC em meio à pandemia. O objetivo maior da reitoria tem sido, em toda a gestão da crise, forjar uma normalidade inexistente e maquiar problemas e dificuldades, para não se comprometer com soluções reais e satisfatórias. Por isso, nem a criação de um GT, nem as reuniões com diretores e CPACs chegam a resultar em propostas consistentes e democráticas. Por isso também, a diretriz do plano de envolvimento das Unidades Acadêmicas pôde ser dispensada, tendo a PROGRAD encerrado precocemente as discussões sobre o plano. Faltam a orientação política para os valores da universidade e da educação pública, democrática e de qualidade e objetivos propriamente educacionais e institucionais.
A realidade paralela na qual se baseia a PPE foi provavelmente baseada na “pesquisa” conduzida pela PRAE que revelou que apenas 1% dos estudantes não tem acesso à internet, divergindo totalmente de todas as demais pesquisas feitas pelas unidades acadêmicas e do próprio DCE, que estimou esse número em 33,6%. Ainda sobre a pesquisa feita pela PRAE, em matéria publicada no jornal O Povo no dia 3 de junho, o interventor diz ter tido “altíssima” participação discente com uma porcentagem, acreditem, de 30%.
Desde a sua apresentação, a PPE já revelava a pressa da construção, que nada tem a ver com emergência. A proposta apresentado não passa de uma compilação desarticulada de textos das pró-reitorias. Sobretudo, a falta do texto da Secretaria de Acessibilidade é reveladora da atitude da reitoria de minimizar dificuldades, de não se comprometer e jogar para a comunidade universitária a solução individual dos problemas. Quase três meses após a suspensão das aulas, a ausência de um plano mínimo por parte do órgão responsável pela acessibilidade na UFC não se justifica.
Foram muitos os alertas sobre a possibilidade de a situação chegar a um ponto onde as decisões equivocadas dificultariam uma solução viável e que não fosse excludente. Um tempo essencial de discussão e construção coletiva foi perdido devido à escolha da reitoria de negar que o período de pandemia seria longo e de não iniciar de imediato o planejamento para o recomeço das atividades. Tal negacionismo forçou docentes e estudantes a uma continuidade improvisada nas atividades remotas. Os exemplos de inoperância são muitos, como não ouvir e engajar a Faculdade de Educação e o Instituto UFC Virtual diretamente nesse processo de planejamento. Foram desconsideradas, ainda, para fins de planejamento imediato, as especificidades das diferentes unidades acadêmicas, nas situações em que aulas remotas eram claramente inviáveis.
Dentre as situações específicas, podemos citar o curso de Letras Libras, que ainda sequer dispõe de um plano de apoio, como se viu pela falta da parte da Secretaria de Acessibilidade na PPE. Também podem ser incluídos aqui praticamente todos os cursos do Instituto de Cultura e Arte, onde o contato e o compartilhamento de materiais é obrigatório para o aprendizado, além das salas adaptadas, com características especiais, que não podem ser reproduzidas no ambiente doméstico.
Considere-se ainda todo o universo de aulas práticas que existem desde as Humanidades até as Ciências e a Saúde. Com base no Painel de Indicadores da PROGRAD, a FFOE, o Labomar e o IEFES, por exemplo, têm mais de 40% das suas disciplinas com conteúdos práticos. Não se pode esquecer das aulas de campo que fazem parte do cotidiano de vários cursos. Isso sem falar nos estágios supervisionados, que estão inseridos em praticamente todos eles. Essas diversas situações criarão muitas possibilidades de calendário em uma proposta que se diz flexível para disfarçar a falta de conhecimento e planejamento das várias realidades na UFC.
Um dos argumentos mais enfatizados na PPE para a rápida adoção de aulas remotas é possibilitar a conclusão do curso para muitos estudantes. Porém, a proposta não revela como solucionará a questão da obrigatoriedade dos estágios supervisionados, que no momento não podem ser realizados e muito menos substituídos por atividades remotas, levando a crer que ou estes serão negligenciados ou a motivação da conclusão de curso é simplesmente um argumento vazio.
O dano formativo pode ser irreparável, devido à descontinuidade do aprendizado e ao represamento de estudantes, fatores agravantes para a evasão.
Durante todo o processo, ficou evidente que as demandas, sugestões e diferentes possibilidades que se apresentam não foram levadas em consideração pela PROGRAD, cujo único intuito parece ser dar fim, de qualquer forma, a um semestre que mal começou. Mais uma vez, o caráter antidemocrático das decisões da administração intervencionista da UFC fica escancarado para a comunidade universitária, o que tem como reflexo a perplexidade com que a ampla maioria do corpo docente e discente recebe a proposta emergencial da PROGRAD.
Desde o início da pandemia, as ações da UFC têm gerado bastante insegurança sobre o trabalho docente, ignorado as situações complicadas do trabalho remoto para quem tem filhos, parentes idosos ou com comorbidades e assédio a professores que não aderiram ao sistema remoto. A proposta da PROGRAD não avança neste sentido e desconsidera o fato de que alguns docentes não têm meios para realização dessas atividades no ambiente doméstico. Desconsidera, ainda, que professores/as apresentando comorbidades não podem se deslocar aos campi para realizar essas aulas com equipamentos da universidade.
A Universidade apresentou ainda um treinamento açodado que não considera os diferentes perfis e idades dos docentes, onde as tecnologias são uma mudança de paradigma no que diz respeito a aulas remotas. Sequer a doença e o luto de familiares são considerados neste cenário de agravamento da pandemia, com afrouxamento de medidas de afastamento social em pleno pico de casos e mortes no estado e no país. Em meio a isso, ainda foi imposto aos docentes em trabalho remoto a perda de auxílios, mesmo que estes estejam usando toda sua infraestrutura doméstica (luz, internet, computador, entre outros) para realizar o trabalho remoto.
Um chip seria a solução para a crise da Covid-19 na UFC?
Estamos diante de um desafio para a continuidade das atividades acadêmicas em tempo de pandemia. Obviamente, o uso de suporte tecnológico para transpor as limitações impostas pelo isolamento surge como um instrumento que pode viabilizar a relação entre alunos e professores. Entretanto, definir quais são as tecnologias necessárias pode exigir um pouco mais de reflexão. Em um país com uma das maiores diferenças sociais do mundo, famílias de baixa renda podem ter sérias dificuldades em disponibilizar um espaço mínimo, equipado de uma mesa e de uma cadeira, para viabilizar o estudo doméstico. Assim, equipamentos básicos podem representar um desafio quase tão grande quanto as peças informáticas e o acesso à rede mundial.
Diante da realidade imposta pela pandemia, que faz gritar o abismo socioeconômico e a diferença social entre os estudantes, em especial aqueles das escolas públicas, muitas instituições brasileiras vêm propondo como alternativa a distribuição de chipspara alunos que não possuem acesso à internet banda larga. Ainda que essa pareça uma medida positiva, é preciso que nos questionemos se é uma medida que garante efetivamente a continuidade das atividades em um regime que se aproxime ao normal.
Um chip permite que um equipamento, como um smartphone, se conecte à internet por meio de tecnologia 3G ou 4G. Mas, é preciso um smartphone, o que não é assim tão óbvio, embora se trate de uma ferramenta bastante popular. Sabemos que a cobertura 3/4G não é excelente no Brasil, principalmente nas regiões periféricas das grandes cidades, em que, geralmente, habitam os alunos de baixa renda. Os campi do interior também apresentam dificuldades relacionadas diretamente ao acesso à internet, pois em determinadas regiões a cobertura móvel e o próprio serviço de internet simplesmente não estão disponíveis ou não apresentam qualidade necessária para o tipo de atividade exigido para as aulas remotas. Além disso, existem diferenças consideráveis entre esses equipamentos portadores de chip, sendo a qualidade da reprodução de vídeos ou capacidade para instalações de aplicativos bastante distintas entre os diversos modelos de custos variáveis.
Outras questões podem comprometer a qualidade e continuidade do uso para atividades acadêmicas, como a capacidade das baterias, o tamanho das telas etc. Nesse caso, obviamente, não podemos esperar que os alunos mais vulneráveis economicamente possuam os equipamentos mais adequados. A disponibilidade de smartphones e internet banda larga para todos os alunos que se encontram isolados não é a realidade, nem em países mais desenvolvidos. Lembremos que um campus universitário oferece democraticamente aos seus alunos o mesmo espaço físico, os mesmos equipamentos universitários e a mesma capacidade de acesso aos professores, independentemente de sua condição social.
Ainda que consideremos que todas essas condições improváveis possam ser alcançadas pelos alunos e famílias de baixa renda, esse não se trata do último obstáculo a ser transposto. Uma mudança de paradigma vem em conjunto com o contexto do isolamento e do uso da tecnologia em substituição ao espaço físico escolar.
A mudança de cenário ressalta, pelo menos, duas dimensões críticas. A primeira delas diz respeito ao suposto desenvolvimento instantâneo de habilidades para o uso de ferramentas tecnológicas inovadoras. Isso requer uma formação adequada, que dificilmente será promovida por meio de soluções simplificadoras e em curto espaço de tempo. A segunda diz respeito ao impacto que a mudança do formato de comunicação presencial para o totalmente virtual promoverá na práxis didática e pedagógica.
Outros elementos se aglutinam e tornam mais complexos os problemas trazidos pela obrigação do isolamento, com passagens obrigatórias pelas eventuais condições insalubres de famílias, superlotação de cômodos, acúmulo de funções domésticas, atenção a pessoas próximas vulneráveis… e, ao mesmo tempo, há o risco da contaminação pela Covid-19. Sim, precisamos todos nos adaptar, e será preciso enfrentar muitos desafios, mas o que é mais relevante neste momento? Um chipserá capaz de suplantar magicamente tantas barreiras?
Nesse momento difícil, fazemos um chamado à construção coletiva nas unidades acadêmicas, nos cursos e departamentos. Contra a atuação desorientadora e descomprometida da reitoria, que quer nos jogar num vale tudo, com cada um por si e deixando para trás os mais vulneráveis, assumimos os compromissos de construir uma forte solidariedade entre docentes, estudantes e técnico-administrativos; de nos empenharmos didática e politicamente pela permanência de todos os nossos estudantes, sem exceção; de submetermos valores, instrumentos, métodos e circunstâncias ao crivo do conhecimento e da reflexão questionadora; enfim, de preservarmos a qualidade do ensino e o caráter democrático e crítico da universidade pública, contra aqueles que se colocam diante dessa instituição e dos servidores públicos como seus inimigos.
Fortaleza, 5 de junho de 2020
Diretoria da ADUFC-Sindicato
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