Raimundo Madeira (Jornalista)
Entre tantas narrativas dolorosas durante esta pandemia de Covid-19, uma das mais tocantes se apresentou em poucas e incisivas palavras, amplamente divulgada pelas mídias digitais. O relato breve expõe outro tipo de sofrimento, mas provoca uma reflexão absolutamente necessária, dentro e fora do atual contexto.
“Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos, como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este e com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje”. O trecho da carta de despedida do ator Flavio Migliaccio, encontrado morto no último dia 4 de maio, desconcerta pelo desencanto e comove pela generosidade. Mesmo no auge do desespero, confessando uma decepção profunda com a espécie humana, não lhe faltaram lucidez e ainda um fio de esperança, ao fazer um apelo pelas próximas gerações.
A despeito da divulgação das imagens da carta e das fotografias do corpo do artista, sem consentimento da família e envolvendo, inclusive, policiais que deveriam zelar pelo respeito à memória do ator e à dor dos parentes, o recado que ele deixa é como um grito que reverbera no silêncio. Um grito para que reavaliemos nossa presença no mundo e valorizemos a existência, do início ao fim, da infância à velhice. Não é improvável que o sofrimento de Flavio Migliaccio tenha se agravado com esta crise sanitária sem precedentes. A pandemia desestabilizou quase todos e representa uma ameaça maior ainda a grupos mais vulneráveis, entre eles os idosos. Mas não cabe, aqui, especular o que estaria envolvido na decisão do ator de antecipar o capítulo final da própria história. Necessário mesmo é atentar sobre as linhas e entrelinhas dessa última página e as lições que elas deixam para o grande público. Apesar de incontáveis e recorrentes demonstrações de que a humanidade não deu certo, como lamentou o artista e como a vida real nos apresenta, é preciso cultivar a confiança no futuro a partir das mudanças de rumo no presente.
Incredulidades à parte, o choque que a pandemia vem causando ao planeta pode despertar o início de um movimento em escala global que conduza a outro modelo civilizatório. O mundo clama por transformações estruturais nos campos ambiental, econômico, político e social, que reduzam as desigualdades e promovam o respeito às diferenças de geração, gênero, orientação sexual, raça e etnia, credo e pensamento.
No plano das relações interpessoais, que também se inaugure um novo tempo, marcado, sobretudo, pela convivência. O que, a priori, parece óbvio, irrelevante ou simplista é, na verdade, o que mais falta à humanidade. Conviver é a própria essência da vida, como se depreende após uma consulta básica ao dicionário. Convivência: modo de vida em que se pode partilhar, vida em comum, ação de coexistir de maneira harmoniosa. A definição vem de encontro às minhas memórias sobre este período de isolamento, memórias que remetem a uma percepção sobre a negação da convivência para além do momento atual. A falta de partilha, de vida em comum, de coexistência harmoniosa é a expressão clara do individualismo e da ausência de empatia, questões fundantes dos pequenos e grandes problemas que o mundo enfrenta, seja qual for a época.
É urgente, urgentíssimo, pensar menos apenas em si, agir mais em beneficio de uma coletividade. Nesse sentido, o trecho da carta de despedida de Flavio Migliaccio assume a importância de um manifesto contundente. Ao reivindicar atenção e cuidado para crianças e velhos, ele nos faz repensar sobre como a sociedade ainda precisa evoluir no tratamento dispensado à primeira e à última geração do ciclo da vida. O processo avançado de envelhecimento populacional exige garantia e ampliação de direitos para uma parcela crescente de idosos, inclusive o direito à convivência. A solidão na velhice revela bastante de uma sociedade que historicamente não respeita os velhos e, em maior ou menor medida, condena quem tem mais idade à exclusão e à reclusão. Além das próprias limitações que a passagem das décadas traz para o corpo e a mente de cada um, há um afastamento natural das pessoas e uma redução do círculo de amigos. Mas a solidão na velhice é também consequência do abandono, desde aquele mais sutil até o mais espantoso, no âmbito doméstico, familiar, ou na esfera pública.
Em tempos de pandemia, o tom jocoso, adotado para disseminar informações via áudios, vídeos e outras ferramentas tecnológicas sobre a necessidade de os idosos ficarem em casa, pode até ajudar a desanuviar o clima pesado causado por tantas más notícias, mas as brincadeiras também expõem uma dificuldade de compreensão sobre a realidade peculiar dos velhos. As dificuldades de adaptação não devem ser encaradas apenas como uma questão de teimosia. Se o atual momento provoca a sensação de confinamento até entre os mais jovens, que contam com uma variedade de opções remotas de comunicação e entretenimento, o isolamento para os mais velhos, que não têm acesso ou não dominam as tecnologias, pode parecer ainda mais adverso. Para muitos senhores e senhoras, a solidão se agravou neste tempo de pandemia. E mesmo entre aqueles que moram com filhos, netos ou sobrinhos, a presença física nem sempre diminui o sentimento de estar sozinho.
Minhas memórias sobre o período de distanciamento social não estão situadas em um tempo definido, são lembranças atemporais, reativadas durante esses meses a partir do que tenho lido nas redes digitais ou nos grupos de aplicativo de mensagens. Os escritos potencializam reflexões que atravessam de algum modo minha existência. Abaixo, uma pequena seleção de registros sobre a pandemia que nos provocam – ou deveriam provocar – para um confronto com outras realidades e com outros períodos.
“O ser humano não nasceu para viver confinado”.
Nem mesmo os bichos deveriam viver sob confinamento, apesar de muitos serem mantidos aprisionados pelos donos, alguns que até admitem preferir os animais aos próprios semelhantes. Mas como minha reflexão é sobre o estado provisório de reclusão humana ao qual estamos atualmente submetidos, eu me vi, novamente, pensando em quem vive em prisão permanente, sob condições indignas, insalubres e de superlotação, condições agravadas neste contexto de pandemia.
“Não à pena de morte por contaminação no sistema prisional e socioeducativo”.
Uma sociedade acentuadamente punitivista, que defende o encarceramento em massa e nega aos infratores da lei até o direito à saúde, não concebe a medida de liberdade, mesmo nesta situação excepcional, de extremo risco de transmissão do novo coronavírus em ambientes com aglomeração de pessoas. O Estado, ao manter as unidades prisionais e os centros socioeducativos superlotados, pode estar instituindo de forma extraoficial a pena máxima, condenando os internos à morte.
“Casa não é prisão, casa é abrigo e proteção”.
Para quem lamenta não aguentar mais ficar em casa, há de se pensar no sentimento de aprisionamento de quem está num leito de hospital, sem a companhia de um parente, sem poder receber uma visita. Há de se lembrar daqueles que se veem obrigados a sair todos os dias para trabalhar, apreensivos com a possibilidade maior do contágio pelo novo coronavírus. Para eles, “fique em casa” é um imperativo fora da realidade. Há de se lembrar ainda daqueles que, atingidos pelo desaquecimento da economia ou pelo desemprego e, portanto, sem renda familiar, prefeririam correr o risco de não ficar em casa a ter de ver os filhos sem serem atendidos nas necessidades mais básicas. E como esquecer os sem-moradia: pessoas que vivem pelas ruas, famílias desalojadas por organizações criminosas, inquilinos despejados por falta de pagamento do aluguel…?
“Não estamos todos no mesmo barco, estamos todos sob a mesma tempestade”.
A intensidade da tempestade é uma só, mas as condições para se proteger dela são bem diferentes. Alguns poucos ocupam barcos imensos e luxuosos, a maioria usa barcos pequenos e simples e outros sequer podem contar com uma embarcação artesanal. A pandemia do novo coronavírus não é tão democrática como se anunciou no estágio inicial. As condições precárias de habitação, saneamento básico e acesso à saúde nas áreas mais desassistidas pelo poder público tornam os seus moradores ainda mais vulneráveis.
“Não podemos voltar ao normal, porque o normal era exatamente o problema. Precisamos voltar melhores, menos egoístas, mais solidários, mais humanos”.
Se é verdade que, depois da tempestade, vem a bonança, façamos a nossa parte para que esse adágio popular se concretize. Enquanto esse tempo não chega, fiquemos em casa e busquemos aprender com a adversidade do período, lembrando que, para alguns, essa adversidade é ainda maior. Que voltemos diferentes. Bom retorno!