Cristiana Carla Aguiar (Psicóloga Clínico-Hospitalar)
Qualquer que seja a realidade objetiva, ainda assim será ao mesmo tempo tão subjetiva quanto as lentes de cada vivente, atravessadas pelo que lhe tange no repertório existencial, social e espiritual.
Assim, consciente do quão passionais venham ser as minhas impressões, eu as trago em partilha, acreditando que a empatia se entrelaça assim, na narrativa de cada um.
Sou Psicóloga e tenho exercido a Clínica nos últimos 30 anos, tanto no meio público quanto privado.
Afastada do trabalho presencial no Hospital e consultório, tenho me dedicado a atendimentos online, vídeos psicoeducativos (para um telejornal local e setor de comunicação do trabalho), algumas leituras técnicas e outras literárias, artesanatos, cozinha, WhatsApp, oração, exercícios de escrita e TV. Ocupo-me com a consciência de que essa tessitura do tempo presente, é graça e empenho.
Sim, a pandemia trouxe desafios antes impensáveis, para qualquer pessoa ou cultura e, diga-se de passagem: algo planetário, que de alguma forma nos irmana e conecta. Somos todos susceptíveis, responsáveis e intimamente interligados. De repente, fomos convocados a pensar para além do umbigo e do bem estar pessoal, porque agora o coletivo é a pauta. Se eu não pensar em como proteger o outro, não consigo me proteger, nem proteger a quem amo, nem cooperar para que a vida volte aos trilhos: os conhecidos ou outros mais desejáveis. Sim, o pânico nos ronda, mas também se avizinham outras experiências únicas, que precisamos ter olhos para ver. E quanto a isso, não paro de me emocionar com as inúmeras manifestações de empatia, solidariedade, esforço, altruísmo, fé e delicadezas de tantas formas. Fico pensando que também estamos tendo uma oportunidade única de “gastar” nosso estoque de talentos para o alento de muitos, sem que isso pareça piegas, ou fora de contexto.
Confesso que, ultimamente, tenho sido irremediavelmente fisgada por gestos quase nada ostensivos. É como se as circunstâncias tivessem aberto em mim, novas zonas sensitivas que amplificam minha conexão com todas as coisas. Pequenos registros que de repente têm a força de me arrancarem do desânimo e me salvarem, como se justificando ali o sentido da vida toda. Eu vou contar alguns.
Bom, aqui onde moro, tem n’algum lugar um ninho de passarinhos de onde acompanho os piados. É como se estivessem em polvorosa ao lado da minha cabeceira. Acordo todo dia com essa zoadinha, independente dos sustos dos noticiários ou dos desatinos políticos do País. Estão lá, e persistem na reinvindicação do que lhes é essencial. Piam e anunciam sua fome, sua satisfação ou o seu sossego de papinhos saciados. Da imaginação, vejo o casal de pais de um lado para o outro, como é de praxe aos passarinhos, para dar conta dos filhotes. O ritmo deles é o da precisão. Não descansam enquanto não garantem a continuação da linhagem. Por certo, talvez, fruto de instinto, fiquem aflitos em dias de vento e chuva mais forte, mas nada que os detenham na defesa e manutenção da prole.
Vou agora para mais um exemplo. Mais adiante, costuro tudo.
Logo no comecinho de tudo, quando não tínhamos a profusão de gestos de solidariedade hoje já tão televisionados, minha filha mandou-nos uma foto de um aviso em seu elevador. Em letras adolescentes, dois irmãos se ofereciam para fazerem qualquer tipo de mandado para os idosos impedidos de sair às ruas. Nossa! Aquilo foi uma intimação de comparecimento à solidariedade possível a mim.
Também tenho uma amiga querida, que sabe me fartar de lirismo. Sem alarde, dia sim outro não, lá está no meu zap, um trecho peneirado do Mia Couto, ou do Manoel de Barros, ou da Clarice Lispector, com o bálsamo preciso à sede do momento. Leio aquilo, e sei que acabamos de comungar.
Se não bastassem estes registros tão loquazes, nesse meio tempo, o novo Coronavirus também me achou. Tomou-me os cheiros, alguns brônquios, quis me encher de medo, e exigiu mais rigor ainda com o isolamento. Pensei que então a poesia dos detalhes e afetos não me salvariam do toque de recolher decretado ao monitoramento dos cuidados. Que nada! Com mais empenho que o vírus, a amorosidade e a fé de uma legião entraram por todas as brechas. Antes que eu organizasse o juízo, pessoas queridas arregimentaram o necessário a uma previsão de urgência. Os íntimos ficaram mais íntimos, os próximos, mais próximos. E eu chorei, porque a fartura me abundou.
Conto essas coisas e não posso conter a emoção que se repete em mim: a gratidão me toma ao mesmo tempo em que a consciência do privilégio me denúncia… Devia ser do acesso de cada pessoa, tanto o pertencimento, quanto as condições de uma vida digna.
Conto essas coisas e o meu desejo é de por palavras nos indizíveis dessa condição humana, tão tosca e tão sublime igualmente.
Vejam: à analogia dos passarinhos, quantos pais e mães de família não estão se recriando para dar a garantia de continuidade à sua prole, em meio a tantos ventos intempestivos… E na mesma moeda, como cada uma de nossas crianças não estão a restaurar nossas forças, tamanha fé que creditam na vida e em quem elas amam! De repente, passarinhos, desconhecidos, amigos e irmãos visitam nossas alcovas e sem intensão primeira, chamam-nos também a empenhar os gestos de generosidade de que somos capazes, assim, no corriqueiro mesmo do dia a dia.
Diz Saramago: “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos. Sem responsabilidade talvez não devamos existir”. Quero minha memória da pandemia, repleta dessas coisas que humanizam a dor e me dão ganas de honrar a vida, responsabilizando-me com mais empenho no que me cabe. E você? O que tem vivido?