Lídia Valesca Menescal (Professora do Centro Universitário Farias Brito, Integrante do Movimento Cada Vida Importa)
No dia 18 de março, o Centro da cidade parou. Era uma quarta-feira, mas o cenário era de domingo. Na Praça do Ferreira, a praça mais ocupada pela população em situação de rua, uma aglomeração andava de um lado para o outro, sem saber o que estava acontecendo. De repente, tudo parou. O sustento diário na dinâmica do Centro, os afazeres da rua: guardar carro, ajudar no carregamento de mercadorias, vender água, fazer o transporte no fluxo de venda das drogas para praças. Trabalho precário, biscates na lógica das sobras e dos resíduos do sistema econômico. Um futuro incerto!
A quarentena, imposta para deter a expansão do novo coronavírus em Fortaleza, interrompeu o fluxo ordinário da metrópole, sempre veloz e descontinuo. Quando os comerciantes e consumidores saíram do Centro, a população em situação de rua, que sempre esteve misturada ao seu ritmo, apareceu aos olhos dos citadinos como um grito, alardeando a sua condição de pobreza extrema.
É uma população heterogênea, formada pelos que dormem nas marquises, por pessoas com transtornos mentais, por desalentados que não conseguiram voltar ao trabalho, por usuários de drogas ameaçados por facções criminosas nas periferias, por famílias sem moradia. A pandemia fez crescer essa população. Soma-se na rua aqueles que vivem nos quartinhos da Senador Alencar, Princesa Isabel, Tereza Cristina e outras ruas dos arredores do Centro. Moradias precárias e insalubres; lugares dormitórios de quem não quer enfrentar a dormida nas marquises, mas, agora, sem dinheiro para pagar o aluguel, cobrado na diária, lotam as praças em busca de comida.
As medidas são sanitárias e a ordem é anunciada a todo instante nos meios de comunicação: ficar em casa, manter o distanciamento social e fazer a higiene pessoal. Mas como fazer isolamento domiciliar quando não se tem casa? Como seguir as condutas de higiene, lavar as mãos, quando não se tem banheiro? Como se manter saudável quando não se tem boa alimentação e acesso a água potável?
Vulneráveis à infecção pelo novo coronavirus, devido ao uso problemático de drogas, às infecções de HIV e à tuberculose que os acometem, em grande número, a pandemia é uma ameaça, quase uma sentença de morte. No entanto, nos primeiros quinze dias de distanciamento social, não usavam máscaras de proteção e muitos dormiam aglomerados nas marquises, sem temor algum. Para quem sofre a discriminação social, a violência policial, a morte matada, o vírus não lhes parece uma ameaça. Como temer o que não se pode ver?
Depois de 38 dias de isolamento social, teve-se a notícia de um idoso na Praça do Liceu ardendo em febre, com tosse e dificuldade de respirar. O porteiro da escola chamou o Samu. Depois de muita espera, o senhor foi levado não se sabe para onde. Não se teve mais notícia. Sem contatos para informar, sem família para avisar, teria ele entrado para as estatísticas de infecção ou de morte? Quando não se tem documentos, a identidade é apenas “morador de rua”. Quem reclama seu desaparecimento? Quem chora a sua morte? Essa é a condição de invisibilidade da população em situação de rua. Uma exclusão profunda dos laços que mantém o sujeito ligados às instituições sociais.
É urgente anunciar que cada pessoa que está em situação de rua tem um nome, uma história de vida, um deslocamento que fez das bordas para as regiões centrais. Cada um e cada uma tem o direito de viver, tem sua dignidade como pessoa humana e sua vida merece ser vivida. Para aquebrantar sua invisibilidade, o poder público precisa garantir direitos, mas é imperativo agir para combater a desigualdade abismal existente que separa os que tem casa dos que não tem.