Eliana Costa Guerra (professora da UFRN)
Tudo ainda parecia distante e surreal. Rapidamente, vivíamos uma manhã de perplexidade diante do que viriam a ser o mundo e o nosso mundo, perpassados pela gravidade, amplitude e velocidade de propagação do sars-cov2, vírus causador da Covid-19. O crescimento dos casos e das mortes e a magnitude do problema causavam sensação de impotência, de estar à beira do abismo. Dias de certa catatonia. Noites insones, a seguir gráficos e curvas, a acompanhar análises e explicações de terapêuticas experimentadas. Parecíamos adentrar, de modo abrupto, no cenário do clássico livro de Albert Camus – A peste. Viveríamos a reclusão, a insana, mas real, disputa por alimentos? Talvez ainda não, mas, nestes tempos de globalização, de amplas e intensas mobilidades, chegaríamos, proximamente, a disputar carregamentos de máscaras cirúrgicas, respiradores e outros itens dos chamados equipamentos de proteção individual, tão caros aos trabalhadores da saúde.
Buscar informações parecia muito mais uma fuga ou uma espécie paradoxal de alienação. Alguns a acharem tudo muito simples e distante, outros, aflitos, anteviam o futuro sombrio a se aproximar. E para nosso espanto e indignação, pessoas e grupos negacionistas seguiam seus “gurus” e “mitos”, expondo-se em atos públicos, contestando dados da ciência e de organismos de pesquisa. De repente, a China parecia nosso vizinho do lado! E o que dizer da bela Itália, cujos relatos de tormentos penetravam nossas casas pela tela da TV ou por via das mídias sociais? A abertura das fronteiras, posta pelo processo de mundialização do capital, é colocada em xeque ou em stand bye. E, víamos emergir novas formas de xenofobia. O mundo parecia assistir, com misto de perplexidade e medo, às cenas de fechamento de fronteiras! Cruzeiros repletos de ricos e abastados, singrando mares, sem permissão para atracar por suspeita ou confirmação de casos de Covid-19!
Rapidamente, cenas da vida real indicavam a necessidade de isolamento social, o imperativo de mantermo-nos, o máximo possível, em nossas casas e de evitarmos contatos com outrem. A paisagem da cidade transformava-se, dia após dia: o ruge-ruge dos carros dá lugar a certa letargia; o silencio de alguns lugares abre espaço ao assobio de pássaros; rostos cobertos por máscaras, ladeando rostos de indiferença ou de perplexidade de transeuntes e moradores de rua, agora mais expostos que nunca! Mas, se tudo parecia distante, agora, tudo estava por demais próximo… Como conseguir viver esse tempo de necessária reclusão? O que fazer diante da viagem adiada, da quebra de expectativas, de projetos em suspenso, de completa incerteza, de tempos turbulentos? Como encontrar outros marcadores do tempo da vida cotidiana?
Acompanhamos de perto relatos do início da preparação das equipes de Unidades de Saúde e de Hospitais para enfrentar esse inimigo invisível, altamente transmissível e, por vezes letal, para o qual a ciência ainda não avançou suficientemente na produção de medicamentos para a cura ou vacina. Todos tateiam! E nós, reclusos em nossas casas, abastecidas e em relativa proteção, o que podemos fazer diante disso tudo?
Eis que uma amiga chega com uma provocação: não podemos ficar paradas esperando a morte chegar, como diria nosso grande maluco beleza! E ela tomou a dianteira: dirigiu-se à Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grade do Norte e, de volta, trouxe-nos uma missão! De pronto, nem imaginávamos a dimensão que tomaria. Assim, tecendo as tramas de uma rede de pessoas fisicamente distantes, mas hiper conectadas, avançamos no aprendizado do trabalho em domicilio, mediado por recursos da tecnologia da informação e da comunicação! Do exílio, ou melhor ou autoexílio, em nossas próprias casas, da revolta diante de posições irresponsáveis de representantes do governo, brotam a vontade e a energia para agir. Não abandonamos nossas capacidades de nos indignar diante de posturas inaceitáveis, não abrimos mão da militância e da crítica fundamentada. Mas, começamos a agir e a somar forças com nossos parceiros!
Desse modo, ante à urgência, gravidade e amplitude do problema, a solidariedade e o envolvimento passam a se materializar em forma de dois campos de ação: um pequenos grupo, preocupado com as condições de trabalho, a segurança e proteção dos trabalhadores da saúde, logo começou a arrecadar dinheiro entre amigos e conhecidos para produzir protetores faciais em acetato e distribuir em serviços de saúde; um grupo maior, sob a coordenação dessa amiga/companheira de trabalho, iniciou a montagem de uma rede, hoje bem complexa, de teleatendimento, por telefone, WhatsApp e aplicativo, a oferecer orientações gerais sobre a Covid-19 para a população. Desse modo, foram sendo constituídos os grupos, compostos por alunos, professores e profissionais, todos das áreas da saúde, para atuar, de 7 às 23 horas, em plataformas de teleatendimentos. A construção dessa complexa arquitetura demandou horas de web-reuniões e de trabalho. Agora, a preocupação maior é gerar informação, passível de ser repassada e orientar os alunos que desenvolvem ação direta junto a pessoas em busca de esclarecimentos acerca da doença, dos pontos de assistência, de condutas em casos de suspeição.
Uma amiga disse sentir-se em uma UTI em tempo integral… tudo parece urgente! Não pensamos nas horas, rompemos noites em busca de aprender, decidir, resolver problemas e intentar estratégias passiveis de apoiar os serviços de saúde, na perspectiva de manter o máximo possível as pessoas em suas casas e bem orientadas sobre quando sair e como proceder, ante uma necessidade de saúde.
Não é sem sofrimento, sem ansiedade, sem certo desespero e constante preocupação que realizamos essa travessia. Tentar arrumar a casa, o escritório, triar livros e roupas; destinar algumas horas do dia, da semana, do mês para o autocuidado. Não descuidar da alimentação, iniciar alguma atividade física! Não há reclamação sobre monotonia. Não há espaço para choramingas, lamentações. Mas, todo choro é permitido, como forma de desabafo, inclusive em espaços virtuais coletivos.
As horas de teletrabalho multiplicam-se na forma de web-reuniões, orientações via mensagens ou conversas telefônicas, elaboração de projetos, captação de recursos, campanhas financeiras, junto a amigos e conhecidos. O cansaço, as horas insones, madrugadas mal dormidas, cochilos no romper do dia ou em momentos roubados de tardes de trabalho, tudo é permitido, exceto manter a atonia e a acomodação! E vêm as lições e aprendizados: ser mais solidários, prescindir de muitos objetos e coisas materiais, apreciar mais o espaço de nossas casas, curtir um jogo de palavras cruzadas, reinventado as noites, rever um filme, escutar velhos discos, abdicar de saídas e nos mantermos próximos de quem amamos e estimamos, mesmo que fisicamente distantes!
E, certamente, a lição maior para nossa sociedade: a visão ultraliberal, que orienta a economia do País, evidencia, de modo contundente, seus limites. As respostas à epidemia são construídas pelos serviços públicos! No nosso caso, o Sistema Único de Saúde, o nosso SUS que está à frente, no atendimento e no cuidado das pessoas infectadas, no planejamento e organização para a atenção àqueles que precisarem durante o período da epidemia, estejam estes infectados ou com outros agravos à saúde. Com seus limites, mas, especialmente, com a riqueza de possibilidades e o compromisso de tantos profissionais, o SUS faz, cada dia mais, a diferença!
Diante desse cotidiano, mutante e mutado, sigo em busca de elos, de cumplicidades, de parceria, de empatia, de solidariedade para reinventar os áridos tempos que vivemos e poder estar, com todos, no amanhecer de um mundo, que será, certamente, diferente, porque necessariamente mais solidário, pois somente assim poderemos findar essa travessia! E, inspirados na poesia de Cora Coralina, reinventemo-nos, na urgente necessidade de preservar a vida!
Aninha e suas pedras – Cora Coralina
Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
E construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. (…)