Dilmar Miranda (Professor da UFC)
*Considerações sobre o tempo em tempos de pandemia
Várias questões estão sendo redimensionadas nestes cruéis tempos de Covid-19: os direitos fundamentais da pessoa humana como a saúde, o trabalho e a educação, os sistemas políticos, a economia, o acirramento das desigualdades sociais, o público e o privado, o ócio, os valores éticos das escolhas pessoais etc. Este é o tempo também dos afetos contidos de entes queridos, muitas vezes apartados, aguardando o momento propício de expandi-los. Confinados em nossas casas, temos todo o tempo para acessar uma grande quantidade de reflexões sobre todas essas questões: certamente o mundo pós-pandemia nunca mais será o mesmo. E é exatamente sobre o tempo que gostaria de pensar, algo que venho me dedicando há tempos, devido às minhas reflexões sobre a música, e que passou a ter um sentido maior, agora, em tempos de confinamento involuntário.
A percepção/concepção do tempo percorre a humanidade desde suas origens, e vem sofrendo, desde então, grandes mudanças. Nos seus inícios, achava-se mergulhada na circularidade do ciclo cósmico. Para os povos antigos, o tempo era visto como a justaposição do começo e do fim de um ciclo natural, exposto pelo movimento solar/lunar, pela ação das marés etc. O ciclo das estações definia o tempo do pastoreio, da semeadura e da colheita com a escolha das sementes das plantas cultivadas no ciclo anterior, fortalecendo a sensação da ciclicidade do tempo vivido. Daí as noções mais antigas tornaram-se subordinadas ao próprio ritmo da natureza, com sua cadência de ciclos repetidos. Mas essa regularidade era às vezes rompida por tempestades ou secas, desorientando os povos que viam a natureza como orientadora de suas vidas mas, ao mesmo tempo, dotada de forças incontroláveis. Esses ciclos naturais escondiam os mistérios do sobrenatural. O invisível era responsável pelo sol/chuva, pelo dia/noite, pela abundância/miséria. Portanto, tinha poderes de vida e morte. O ciclo cósmico era expressão de forças sagradas que faziam a humanidade se sujeitar ao Tempo dos Deuses.
Na era cristã, o mundo ocidental sofre uma mudança crucial. Com o cristianismo, a humanidade, ao participar da história de um Deus que se faz homem, vê surgir um tempo linear – a vida do Cristo encarnado, e nós participantes da vida sagrada do Salvador, e não mais a temporalidade cíclica de eventos que retornavam com regularidade, como queriam os antigos. E quem joga um papel crucial nessa nova concepção é o bispo de Hipona, o africano Agostinho, um pensador muito bem humorado do cristianismo primitivo, diria mesmo um gozador. “Dai-me, Senhor, a castidade, mas não agora”, diz em suas Confissões. Em outro trecho, diz que Deus, antes da criação do mundo (portanto antes de existir o tempo), “estava pensando em criar o inferno para as pessoas que perguntavam o que Ele fazia antes de criar o mundo”. Seu grande tema, e que tanto o fascinava, era a questão do tempo e sua relação com a eternidade. “O que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei. Quando me perguntam, não sei o que responder”. Como falar do passado, algo que não mais existe, e do futuro, algo que ainda não existe? E quanto ao presente? Se este se mantivesse sempre presente e não tornasse passado, não seria tempo mas eternidade.
Mas esse dilema não o impede de pensar o tempo ao expor sua reflexão sobre a medida do tempo. Como medir o que já não é e o que ainda não é, e o aqui e agora de um presente incapturável? Ele responde vinculando a noção de tempo à música. O que existe, de fato, é o presente do passado, presente do presente e presente do futuro, i.é, memória do passado, do presente e do futuro. O tempo só existe como memória, naquilo que é retido por ela e que flui no tempo. E a melhor expressão da percepção interior da duração temporal retida na nossa lembrança, é a música. Segue o exemplo: imaginemos cantar algo que já conheço. Ao começar, minha expectativa se estende a todo o canto, e na medida que canto, entregando o já cantado ao passado, tudo vai se distendendo ao longo da memória. Dessa forma, meu canto no presente, volta-se para a lembrança do que já foi cantado e da expectativa do que ainda será cantado. Minha atenção é o presente, e por ela passa o que antes era futuro, tornando-se passado, até completar todo o fluxo temporal da canção. E, ao findá-la, passa completamente para o domínio da memória. Ou seja, a memória nos edita o tempo da música. E, ao efetivá-la – eis a grande sacada de Agostinho que podemos concluir – faz a música ser a forma do tempo.
(Um parêntese: ao refletir sobre essa noção da música enquanto forma do tempo, pensei inicialmente que a dança seria o gesto da música. Porém, ao ser alertado por uma bailarina ao afirmar ser possível dançar sem música ou qualquer outro som, concluí que a dança é o gesto do tempo).
E a música que melhor expressava ser a forma do tempo era o gregoriano (outro grande fascínio de Agostinho), entoado no interior dos mosteiros, marcando a vida e as horas da existência, não só dos monges mas também da sociedade medieval como um todo. Quem leu O nome da rosa de Umberto Eco ou assistiu ao filme sabe disso. O andamento do gregoriano fluía sem tempo medido, sem nenhuma sujeição à métrica do compasso (que ainda nem existia). O andamento da palavra cantada, do louvor sereno a Deus, fluía no seu ritmo frásico, conforme a feliz expressão do prof. Wisnik.
Essa noção do tempo da Idade Média sofrerá um grande abalo. O mundo ocidental, ao entrar na era moderna, irá sofrer um imenso impacto em várias de suas convicções. Se antes o tempo era visto como algo pertencente a Deus, e sua forma era o gregoriano, vários distúrbios começam a abalar a vida medieval. Fixemo-nos apenas em alguns eventos relacionados ao domínio do tempo da época, fortalecendo furtivamente uma nova mentalidade: a invenção do relógio mecânico, o canto medido (cantus mensurabilis), o compasso, o ritmo das danças profanas etc. As trocas comerciais constituem uma nova classe – os mercadores – que, aos poucos, faz infiltrar uma nova concepção que irá abalar séculos de crença: o tempo não mais pertence aos deuses, como na Antiguidade, nem à divindade cristã. Ingressamos no tempo dos homens. Agora tempo é dinheiro, e ele pode ser vendido quando o banqueiro cobra juros de seu empréstimo ou o mercador recebe a remuneração de um produto vendido algum tempo atrás. Isso significa um imenso choque nas crenças do mundo cristão. No plano econômico, a Igreja reage fortemente contra a instituição dos juros, ao identificar nessa prática a compra-e-venda do tempo. O tempo não se vende pois pertence a Deus. No plano da arte musical, a Igreja do Concílio de Trento, em plena era moderna, busca ainda preservar o gregoriano como sua única música oficial, ao mesmo tempo que condena a música polifônica de compassos medidos.
Aos poucos, vai se forjando um ingrediente definidor das sociedades produtoras de mercadoria. Tudo se transforma em valor de troca. Tudo vira mercadoria. E quando falamos tudo, significa tudo mesmo, até a vida. Essa mentalidade se expande e penetra fundo no coração e mente das classes dominantes do Ocidente até os dias atuais. E este é um dos embates cruciais que presenciamos nas formas de combate à pandemia, onde governos e setores das classes dominantes, como as do Brasil, veem o combate à pandemia sob a ótica de uma economia que não pode parar, mesmo com o sacrifício de milhares e milhares de vidas. Com a pandemia, o ciclo capitalista e sua visão subsequente do tempo-valor-de-troca, sofre um abalo catastrófico, talvez sem precedentes na contemporaneidade, semelhante às intempéries do antigo período cíclico do Tempo dos Deuses. Uma nova concepção está sendo gestada nas entranhas da crise. Cabe-nos a resistência e a esperança de um tempo outro. Recorrendo à velha dialética de Hegel
O que é já contém
O que não mais será,
E o que um dia ser deverá.
Espero que ninguém tenha perdido seu tempo lendo este texto.