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MEMÓRIAS DE QUARENTENA 55: SOBRE VAPORES E PEDRAS

Ana Paula Rabelo (Professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira UNILAB-CE)

Dois passos depois do último suspiro, percebi que as pedras evaporavam com a urina que impregnava a praça. O papelão, as garrafas de plástico ainda com água e as latas de refrigerantes vazias se misturavam com o vapor. Senti uma vertigem. Sentei na ponta do banco para não cair, mas o chão estava mais próximo do que o próximo passo, do que a próxima pulsação… Com as pernas abertas, cotovelos nos joelhos e mãos ainda segurando a cabeça, levantei sobrancelhas e olhos em direção ao cinema, mas a coluna da hora obstacularizava a cena plena…

Fiquei na dúvida se estava em 2020 ou se ainda em 1960, quando logo um ônibus poderia passar por ali, ou em 1990, quando cavalos da guarda, a qualquer instante, trotariam e cagariam. Ouviria os cascos batendo nas pedras, olhando para o céu… O sorvete azul da menina cairia silenciosamente ao atravessar a rua. Os sons daqueles tempos foram vindo me visitar, tão sólidos que cheguei a sentir a mão da minha mãe me puxando, quase me arrastando, em seu passo apressado-miúdo, para atravessar aquele mar de pernas. Mamãe entrelaçava seus dedos nos meus como quem fecha a casa em dias chuvosos. Levantei ainda mais a sobrancelha e os olhos para testar meus sentidos, mas não conseguia ver rosto nenhum. Ninguém. E, no segundo seguinte, apesar das badaladas, era o relógio vermelho que derretia como vela, sem piedade. Deixando cair pingos quentes no buraco dos desejos. Corri para perto do poço, precisava segurar os pingos e impedir que a fonte de nossos desejos fosse selada…

Só percebi o suor escorrendo pelas costas, quando o vento voltou intenso, pregando um filete de papelão no meu tornozelo. Enxuguei as mãos frias na calça comprida, ajustei a máscara e os óculos embaçados e olhei de novo para o cinema. Já conseguia ver a porta, mas as palavras ainda estavam embaralhadas por lá e por cá. Aqui dentro, nenhum pensamento fazia sentido. Aqui dentro, estava perdida no tempo. Era dia e a praça vazia de gente me deixava enlouquecida de memórias e de existências. Quem estava morrendo, afinal? Um tempo? Um lugar? Um sonho? Eu? 100 mil pessoas?

Ou tudo morria e nascia?

Voltei para o banco, apertei bem os olhos e tive a sensação de que aquele vazio extremo era o contrário de uma tempestade, de uma inundação, de um desabamento… 2020 era sucção, vácuo, partidas, estar sem estar, um sentir teatral de afetos e, ao mesmo tempo, um desejo violento de aprender a ser outro, com o melhor do humano em sua existência coletiva.

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