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MEMÓRIA DE QUARENTENA 33: DESIGUALDADE SOCIAL, ESTADO E CONSUMISMO NA PANDEMIA – OS NÓS DA SOCIEDADE DE CLASSES

Antônia Rozimar Machado e Rocha (Profa. FACED/UFC)

Memórias da quarentena na pandemia do Coronavírus nos remetem a sentimentos que se misturam. Como falar dessas memórias? Como fatos do passado? Lamentavelmente do presente. De um presente com traços de medos, inseguranças, incertezas. O vírus nos submeteu à nefasta realidade: estávamos em aula, cumprindo o cotidiano e vivendo a pseudonormalidade de nossas vidas e, um dia depois, ficamos isolados em nossas casas e tantos outros indivíduos expostos ao contágio. Pouco mais de uma semana, os noticiários anunciavam freneticamente as tantas mortes, situação ímpar na história de gerações. O Presidente do país caçoava: é só uma gripezinha! Mas, de tantos fatos que povoam hoje nossas lembranças tão vivas e recentes e que ficarão presas na memória é de como a humanidade e, em especial, nós brasileiras e brasileiros, tivemos e temos que enfrentar cotidianamente três grandes crises. A primeira éde natureza sanitária que acomete a saúde, se revelando de forma aguda e intensa nesta pandemia do Coronavírus, arrastando com ela outras duas crises: de cunho econômico e outra de cunho político.

Mesmo antes do Coronavírus, a crise sanitária e da saúde já existia e se manifestava claramente na realidade das periferias de nosso ufanado país. Lá, o braço social do Estado já falhava há séculos no atendimento às classes desfavorecidas, inclusive pela ausência ou precariedade de programas de atenção básica à saúde.A atual pandemia expôs as chagas abertas de uma sociedade marcada por uma aguda divisão de classes e de extrema desigualdade social, revelando a face cruel da negação ao direito à saúde e à vida. Mostra a olho nu a difícil realidade de uma classe que historicamente foi oprimida e esteve à margem do acesso à ciência, à educação de qualidade, às condições decentes de moradia e saneamento e, por isso mesmo, os empobrecidos deste sistema se tornam mais vulneráveis e suscetíveis à fase mais aguda e grave da doença. É nos pobres deste país que se concentram os grupos de maiores riscos, resultado das torpes condições de vida a que estão submetidos em toda sua dura existência de classe trabalhadora que come mal, habita mal, e submete-se a trabalhos precarizados que comprometem sua saúde.

A divisão de classes é secular na história da humanidade. No Brasil, que não experimentou sequer o já frágil modelo de Estado de bem-estar social, a classe dos oprimidos não chegou a conquistar direitos sociais alcançados em países mais desenvolvidos do capitalismo, como educação e saúde de qualidade. Submetidos aos riscos de contágio, de adoecimento e de morte, os efeitos da pandemia limitou-lhes até o acesso à educação presencial e o poder público os jogou no mar revolto do improviso, das ditas aulas remotas, escanchando crianças e jovens em árvores, trepados em muros, sentados desconfortavelmente em bancos de praça, pegando de empréstimo sinais de internet de vizinhos e familiares para ouvir vozes longínquas de seus professores, estes, sobrecarregados de tarefas de sua profissão e de suas vidas pessoais, também atingidas pelo vírus da Covid e pela indiferença de governos.

Outro aspecto que parece ganhar relevo neste cenário é como o Estado, no mundo inteiro, tem ocupado papel central no socorro direto tanto à saúde como à economia, na contramão do receituário neoliberal.Mas, uma análise, embora que superficial do Brasil de 2020, nos permite compreender que mesmo imersos na maior crise da saúde de nosso século, o Brasil afunda-se numa crise política aguda, com marcas latentes de autoritarismo e de práticas antidemocráticas adotadas pelo atual Presidente e seus apoiadores que, na contramão dos parâmetros civilizatórios, dos procedimentos internacionais de segurança sanitária, insistem em desqualificar a ciência, a subdimensionar a grave pandemia que avança de forma galopante em nosso país.

Representantes do mercado, por sua vez, não deixam de defender seus interesses mesmo em momentos de uma calamidade social como esta, pressionando governos locais e nacional para autorizarem a reabertura de seus negócios e continuarem a lucrar. Mas, se o Estado cede às pressões dos grandes capitalistas, inclusive com generosos aportes financeiros, os pequenos investidores têm enfrentado dificuldades para conseguir empréstimos para tocar seus negócios.Em meio a pandemia, sem quaisquer garantias de atendimento médico adequado aos mais vulneráveis, governos estaduais e municipais têm decretado a reabertura de comércios e de atividades de serviço. E como as pessoas têm se comportado com o afrouxamento do isolamento social? Noticiários do Brasil inteiro revelam uma corrida às compras, filas enormes, euforia. É como se comprar, consumir, fosse o ato mais humano, que mais as significa.

Do mundo dos homens ao mundo das coisas, quais as implicações da mercadoria sobre a sociabilidade humana? Provocando o leitor: como uma parte grande de indivíduos deixa a segurança (às vezes, já frágil) do seu lar para se amontoar em filas de lojas para comprar, se acotovelar em centros de comércio diante de um cenário de tantas mortes, de tantas perdas? Perdas de vidas, de saúde, de sonhos de futuro, de esperança. Os capitalistas trabalham incansavelmente para estimular o consumismo desenfreado e projetar as mercadorias num patamar de superioridade que as eleva acima dos mais nobres sentimentos humanos e, assim, passamos a “coisificar” tudo, até as nossas mais estimadas relações. Personificamos a mercadoria:é como se ela ganhasse vida, tomasse conta do nosso corpo, da nossa mente, do nosso espírito. Mesmo em tempos de pandemia, projetamo-nos sobre o abismo do consumismo a passos largos, com sorriso aberto, como se a normalidade de nossas vidas tivesse nos sido devolvida. Somos produtos de uma sociedade que quantifica a posse, que valoriza a marca, que adora a mercadoria, que a deseja às vezes loucamente, nem que para tê-la, comprometamos nosso sustento por todo ano, mediante a aparência de suaves prestações. Mas, se consumir dá prazer, preenche vazios, também os aumenta, uma vez que nos proporciona falsas e efêmeras sensações. A mercadoria é, assim, o“novo” que nos falta, mas também que nos “coisifica”, é a fuga do cotidiano cinzento, como se as esperanças fossem plantadas não mais no chão de nossa humanidade, mas das gôndolas e vitrines das lojas.Mas, o próprio ato de consumir é pautado pela sociedade de classes. Há uma significativa parcela da população que não tem acesso aos itens mais básicos necessários à sobrevivência, como a alimentação, por exemplo. O discurso neoliberal apregoa que tudo é uma questão de força de vontade, uma vez que as oportunidades estão postas e que as pessoas são livres para fazerem suas escolhas. Se é uma questão de esforço pessoal, de fazer escolhas, neste dantesco cenário de pandemia, quem escolhe morrer? A vida ou a morte é determinada em larga medida pela condição social que os indivíduos ocupam. Pessoas empobrecidas têm condições infinitamente menores de sobrevivência do que aquelas que podem se alimentar bem, que habitam bem, que são bem informadas sobre os riscos da doença. É como se vivêssemos num eterno cabo de guerra em que se tem, ao centro, um enorme fosso social. De um lado da corda, frágeis corpos e seus apoiadores a puxam desesperadamente, tentando dia a dia sobreviver dos efeitos da desigualdade social; do outro lado da corda, poucos corpos bem nutridos, bem “instruídos”, puxam-na com vantagem, arrastando a classe trabalhadora para o abismo das incertezas, da pobreza, do adoecimento e até da morte. Quando mais corpos frágeis se juntam aos anteriores e puxam a corda a seu favor, o outro grupo reage e convoca o defensor de seus interesses: o Estado. Com seu braço forte, o Estado os socorre, os ergue, os conduz à vitória. Mas, há mais dominados do que dominadores. É preciso resistir para existir. Que a pandemia nos traga a serenidade para pensar nessas questões. Que possamos cultivar sonhos de uma sociedade justa, inclusiva e humana para todos e todas, sem cabos de guerra. Que a competição dê lugar à cooperação e à solidariedade e o individualismo egoísta do capital seja sobrepujado um dia pela força do coletivo. Sigamos adiante! Muita luta ainda pela frente!

Seção sindical dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará

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