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MEMÓRIAS DE QUARENTENA 04: PERCORRENDO-ME EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS

Mário Fellipe (Doutorando em Sociologia UFC)

Eu tinha acabado de chegar em Paris quando o presidente francês Emmanuel Macron anunciara o confinamento em massa da população, em função da pandemia do novo coronavírus. Paris era o quarto destino de uma viagem que eu estava fazendo para a Europa. Na minha vida pessoal, tentava recobrar o equilíbrio após o término inesperado de uma relação amorosa de longa data. À minha volta, o mundo parecia ter entrado em completo desequilíbrio após a invasão de um ser invisível e desconhecido.

Embora estivesse atravessando um drama pessoal, tive a oportunidade, antes da disseminação do vírus pelo mundo, de vivenciar uma experiência importante durante a viagem: a de estar só. A viagem permitiu-me estar só em diferentes lugares, caminhar livremente pelas ruas, parar para observar as pessoas, dar espaço para sentir diferentes sensações e de experimentar situações inusitadas. Vivi Lisboa, Barcelona e Londres em meio a longas caminhadas realizadas na companhia de mim mesmo.

Foi caminhando que eu pude me redescobrir como corpo, habitante e habitado por um espaço. Corpo que, face ao cansaço do peso de ser sempre o mesmo, se lançava no desconhecido, mas que era logo capturado por uma rotina e por uma história que o lembravam sobre sua pouca habilidade para lidar com as mudanças. Caminhar foi um modo que encontrei de exercitar os meus limites e as minhas possibilidades, de matar o tempo, de dar folga ao pensamento, mas também de tocar no meu vazio e de elaborar a minha dor. Ao mesmo tempo em que eu aprendia a caminhar por aquelas ruas desconhecidas, aprendia também a me percorrer, a caminhar pelos contornos acidentados da minha subjetividade.

A cada parada, aprendi um pouco sobre o viver, sobre o amar, sobre mim, sobre o outro e sobre o espaço que eu pisava. Percorri o meu vazio enquanto fazia longas caminhadas. Aprendi a me ver enquanto olhava para a cidade. Caminhando, eu me achei e me perdi em minhas contradições. Caminhando, visitei lugares, fiz registro deles e de mim, exercitei o meu sentir, mas também fui tomado por um sentimento de tristeza ao me deparar com o vazio das ruas e senti saudade da cadência de tempos normais. Enquanto estive nessas cidades, fui uma testemunha ocular de seus movimentos e acontecimentos.

Era sábado quando cheguei a Paris. Naquela noite, acompanhado do meu companheiro, guardamos as malas nos hotéis e fomos comer uma pizza. Enquanto comíamos a pizza, assistíamos pela TV o pronunciamento do presidente francês. Não compreendíamos nada da língua. Só soube depois que em sua fala insistia no alerta: “Estamos em guerra”, enquanto anunciava a urgência do isolamento social, como medida preventiva a propagação do vírus recém chegado em território francês. A partir da meia noite daquele sábado, restaurantes, bares, lojas e espaços como museus e sítios históricos fechariam por tempo indeterminado. Apenas supermercados e farmácias manteriam seu funcionamento normal.

No dia seguinte, ao caminhar nos arredores do bairro em que eu estava hospedado à procura de algo para me alimentar, observei que as ruas estavam semi-desertas e quase todo o comércio fechado. Chamou-me a atenção uma frase estampada de um supermercado que dizia que LA REVOLUTION SERA FEMINIST. Minha sensação ao ver aquela Paris foi de enorme tristeza. Era domingo e eu estava hospedado em um bairro conhecido por famosas galerias de arte, restaurantes de rua e por abrigar o apartamento onde nasceu e morou, por vários anos, a cantora Édith Piaf, locais que, infelizmente, não pude conhecer. O vazio de dias de domingo penetrava-se por entre as ruas da cidade, cobrindo o tempo de silêncio e de tristeza. Alguma coisa havia mudado na cidade do amor. Agora, impedido de caminhar livremente pelas ruas, isolado em um quarto de hotel, me vi forçado a voltar meu olhar sobre um sujeito em ebulição, habitando um mundo também em ebulição. O corpo, descostumado do hábito da rotina, não sabia o que fazer com suas turbulências e inquietudes. Sentia dúvida com relação ao seu futuro e ao futuro do mundo. Momentos de suspensão nos lembram acerca de nossa condição corporal, onde o corpo é convocado constantemente para sentir afetos dos mais diversos e situações das mais inesperadas.

O mundo, conforme a gente conhecia, estava em suspensão.

Experimentávamos aquilo que Bauman chamou de estado de interregno, onde não éramos nem uma coisa nem outra. O clima era de incerteza. A única coisa que sabíamos era que precisaríamos nos isolar em nossas casas. Tivemos que introduzir novos hábitos ao sair de casa: máscara no rosto, algumas gotas de álcool em gel nas mãos e atenção a distância social de 2 metros. Pude experimentar essa sensação de luto em relação ao mundo que conhecíamos ao caminhar pela Champys Élyssés. Conhecida pelos seus restaurantes, cafés e lojas de luxo, a avenida mais prestigiada do mundo estava vazia. A grande cadeia do consumo tinha parado. Algumas das grandes lojas que moldaram nosso desejo e nossa forma de ser, de consumir e de viver se dedicavam agora à confecção de máscaras e de equipamentos de proteção individual. O silêncio das ruas era quebrado com gestos coletivos de agradecimento dirigidos aos profissionais de saúde que coloriam de vida as sacadas das janelas das casas. O mundo parecia estar mudando.

De repente, do dia para noite, tudo havia parado. Fomos forçados a nos isolar no interior de nossas casas, visando a proteger esse outro que durante tanto tempo foi visto como ameaçador, embora destituído de qualquer risco de perigo. Por um tempo, os muros que nos separavam pareciam ter mudado de lugar e de propósito: nossos lares se convertiam nos muros que, outrora, nos mantinham separados, mas, agora em nome da proteção do outro. Mas, o vírus também expunha a virulência do nosso egoísmo, por meio de um nacionalismo extremado que, visando ao cuidado somente dos seus, usa da influência e do poder de barganha em benefício próprio, mesmo que isso custe a morte de milhares de pessoas. A emergência do vírus colocou em cheque os limites do nosso modo de viver em sociedade, forçando as nações do mundo a implementarem políticas de proteção social, fortalecerem o sistema de saúde universal e darem ouvidos à ciência. Como disse também a historiadora Lilian Schwarcz, “a ciência que era bandido, tornou-se a grande utopia.”

Como disse o filósofo Manfredo de Oliveira, durante muito tempo a crença nesse nosso antigo modo de vida, pautado em uma absolutização do mercado e na promessa de um mundo livre de qualquer forma de regulação, esteve fora do nosso campo de interrogações, criando assim uma dicotomia radical entre economia e ética. Enquanto vivíamos no ritmo alucinante de nossas rotinas, não nos demos conta de que fomos perdendo também a dimensão do outro do nosso horizonte de expectativas. O outro foi se tornando um elemento cada vez mais acessório no nosso campo de relações, exercendo uma função mínima, de natureza compensatória, que servia apenas para nos autorizar. Foi aí que o outro foi se transformando em um like, uma curtida, um nude, uma mensagem de voz, na placa de carro divulgada por um aplicativo de celular como resultado de um processo recente de desenvolvimento tecnológico.

Talvez nossa dificuldade hoje em respeitar o isolamento social como forma de garantia da vida futura no planeta se dê pelo fato dessa política de prevenção se justificar em nome da coletividade. Tenho escutado muitas pessoas dizendo: “Eu não tenho doença”, “tenho uma boa imunidade”, “sou jovem”, o que demonstra que a figura do outro, como aquele que dá consistência para o eu, já não está presente no horizonte dessas pessoas que se veem como indivíduos privatizados. A insistência na livre circulação é um efeito de uma sociedade que aprendeu a se enxergar como autônoma, gestora de si e de indivíduos que se veem como seres atomizados e que, portanto, enxergam suas existências como uma esfera independente do corpo social.

A inserção da tecnologia em nossas vidas fortaleceu a crença em um sujeito independente e autocentrado. Como diz a psicanalista Maria Homem, o século XX fetichizou a tecnologia que, hoje, mostra seus limites. O smartphone acabou com as fronteiras que dividiam o espaço doméstico do espaço laboral. Com o celular ao alcance de nossas mãos, tornamo-nos indivíduos conectados. Sempre com pressa e sem tempo para parar para se avaliar e poder retomar o percurso, fomos em grande parte forçados a entrar no divã de nossas casas para poder recuperar um elo perdido com o mundo e com nós mesmos.

Penso que a crise do covid-19 talvez seja uma boa oportunidade de aprendermos, isolados, a nos ouvir melhor (quem dispõe desse privilégio), desacelerando nossas atividades e mudando as regras de um jogo social que nos interpela à pressa, à necessidade de permanente conexão e ao trabalho ininterrupto. O filósofo Preciado nos dá uma dica de como começar esse percurso de contraofensiva a esse modelo de sociedade que avalia pessoas por sua produtividade. “Usemos o tempo e a força da clausura para estudar as tradições das lutas e resistências minoritárias que têm nos ajudado a sobreviver até agora. Desliguemos os celulares. Desconectemos a internet. Façamos o grande blecaute frente aos satélites que nos vigiam e imaginemos, junto, a revolução que vem.” É um exercício difícil, pois exige a mudança de um modo de estar no mundo, mas talvez nos ajude a repensar o mundo que criamos e o mundo que somos. Negar a oportunidade de nos percorrer nesse momento é aceitar ficar no meio do caminho, barrados pela impossibilidade de continuarmos a ser o que éramos e pela fantasia da concretização de um mundo ideal, sem contradição.

Seção sindical dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará

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